Episódio 3: “San Mateo del Mar: Como continuar sendo Ikoots diante dos megaprojetos de desenvolvimento” com a Prof. Flavia Cuturi e a ativista Ikoots Betty Gutiérrez

Situado entre o Oceano Pacífico, as lagoas do istmo mexicano e a refinaria de petróleo na cidade de Salina Cruz, o povo Ikoots de San Mateo del Mar enfrenta desafios existenciais no Antropoceno. Neste episódio, estabelecemos um diálogo com Beatriz Gutiérrez, educadora e ativista Ikoots, e Flavia Cuturi, antropóloga que tem estado envolvida na vida social e cultural de San Mateo por décadas. Beatriz e Flavia refletem sobre os impactos socioambientais dos projetos de desenvolvimento nessas terras, a contaminação física e espiritual e os desafios para a sobrevivência nesta crise global. Elas também apontam a necessidade de estabelecer diálogos interculturais e interdisciplinares para imaginar e construir rotas “alternativas” para o “viver bem”, ou monapaküy na língua dos Ikoots.
0:00 / 0:00
EIA podcast series
Flavia G. Cuturi é professora de antropologia cultural na Universidade de Nápoles L’Orientale, na Itália. Enquanto ainda era estudante, começou um intercâmbio de conhecimentos e experiências de vida com os Ikoots de San Mateo del Mar, Oaxaca, que continua a crescer até hoje. Seus envolvimentos com o povo Ikoots têm se concentrado em projetos de co-participação para a valorização das vozes e saberes locais. Através de uma abordagem de gênero e incluindo contribuições da antropologia linguística, ela tem refletido sobre a relação entre escrita e oralidade na construção da identidade dos povos nativos. Recentemente, trabalhou sobre a história da colonização na região sul do Istmo de Tehuantepec e as atuais formas de neocolonização e exploração dos recursos ambientais.

Beatriz Gutiérrez Luis é originária da comunidade Ikoots de San Mateo del Mar, em Oaxaca, México. Ela é professora bilíngue de educação infantil e tem trabalhado há 34 anos para fortalecer a língua e a cultura Ikoots. Mais recentemente, tem atuado como intermediária na organização comunitária Monapaküy, que tem sido ativa na reconstrução da aldeia após um devastador terremoto em 2017 e em projetos de saúde comunitária e na implementação de ecotécnicas.

Transcrição

Este episódio foi gravado em espanhol. Abaixo está a tradução em português do podcast.

Episódio 3: “San Mateo del Mar: como continuar sendo Ikoots diante dos megaprojetos de desenvolvimento”

00:00:01 Juan Mayorga: Desigualdades Corporificadas do Antropoceno Construindo competências em antropologia médica. Uma série que analisa os efeitos no bem-estar humano e não humano nesta época geológica de profundas transformações.

00:00:21 Gabriela Martínez: Como conciliar o bem-estar humano e o da natureza? O que pesa mais, o interesse da nação no desenvolvimento ou na conservação da natureza? Direitos humanos individuais ou direitos coletivos dos povos? O que são direitos bioculturais? E, em todo caso, quais são os direitos da natureza? Diante das crescentes e cada vez mais prementes crises socioambientais do Antropoceno, as práticas responsáveis ​​e sustentáveis ​​de soberania dos povos indígenas falam àqueles que lidam com os direitos humanos e os direitos da natureza.

Vamos falar sobre isso hoje neste novo episódio do podcast Desigualdades Corporificadas do Antropoceno, uma colaboração internacional entre a University College London em Londres, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul no Brasil e o Centro de Pesquisa e Estudos Superiores em Antropologia Social, CIESAS Pacífico Sul, no México.

Sou Gabriela Martínez, pesquisadora de pós-doutorado no CIESAS, Pacífico Sul e nesta ocasião tenho o prazer de compartilhar esta conversa com duas grandes mulheres como a Professora Beatriz Gutiérrez e a Professora Flavia Cuturi.

Seja bem vinda Flávia, seja bem vinda Bety, como vai?

00:01:37 Flavia Cuturi: Obrigada, bem, aqui de San Mateo del Mar, Oaxaca, México.

00:01:43 Beatriz Gutiérrez: E bem, Beatriz Gutiérrez, boa tarde daqui, sou originária da Comunidade de San Mateo del Mar.

00:01:49 Gabriela: Bom, muito obrigada, Bety. Muito obrigada, Flávia. É realmente um prazer tê-los e um privilegio que estejam conosco.

Bem, para começar, eu gostaria de apresentá-las ao nosso público. Beatriz Gutiérrez Luis, é originária da Comunidade de San Mateo del Mar, é professora de educação pré-escolar bilíngue e há 34 anos colabora para fortalecer a língua e a cultura Ikoots através de iniciativas para promover a educação bilíngue e, mais recentemente, como a intermediária de Monapaküy, a organização comunitária de apoio à reconstrução após o terremoto de 2017, aqui em Oaxaca, México, com diversas iniciativas em colaboração com outras organizações.

Por sua vez, Flavia Cuturi é professora de Antropologia Cultural na Universidade Napoli L’Orientale, na Itália. Como uma estudante de Antropologia na Universidade Sapienza de Roma, ela iniciou uma troca de conhecimentos e experiências de vida com os Ikoots de San Mateo del Mar em Oaxaca, que continua a florescer até hoje, é claro. Ao longo de tantos anos, o seu compromisso com as populações centrou-se em projetos conjuntos que visam valorizar os saberes locais envolvidos, por exemplo, em atividades como a pesca, a preparação de alimentos, a arte de tecer e outras expressões comunicativas e identitárias como canções, poemas, murais, etc.

Um dos temas mais recentemente discutidos por Flávia tem a ver com a história da colonização da região até chegar às atuais formas de neocolonização dos recursos ambientais e aos efeitos eco-socio-políticos que os projetos extrativistas têm na comunidade Ikoots. Bem, muito obrigada a vocês duas e eu gostaria de começar pela professora Bety. Você poderia nos explicar quem são o povo indígena Ikoots e descrever onde eles vivem e como é a terra que habitam, por favor?

00:03:50 Beatriz: Bem, “dios ikon müm, teat najneajay apmingeayiün akas poch ningüy tiül aaga nine manchiük küy” (na língua ombeayiüts). “Boa tarde senhoras e senhores, que bom, vocês vão ouvir algumas palavras nesse aparelhinho.”

Boa tarde a todos e é também um prazer estar aqui para trocar algumas palavras com o povo e o público que vai receber uma saudação daqui das terras dos Ikoots.

O que posso dizer sobre meu povo? Pois bem, somos um povo que está nessas terras há aproximadamente 1000 anos. Somos um povo de homens e mulheres que se dedicam à pesca, ao artesanato e que sobrevivem nessas terras mágicas, pode-se dizer, porque em tempos de chuva tudo é verde, harmonioso. Em tempos de ventos fortes, que é o que mais temos aqui, muitos ventos fortes já que vão do mês de outubro até o ano passado, tivemos até uma parte de ventos em abril e nesses ventos em que estamos, bom, nós também podemos encontrar dunas, podemos encontrar partes áridas, convivemos com flora como diferentes tipos de cactos, diferentes tipos de manguezais. É um tipo de Terra que nos dá muito, né? Nos dá muito no sentido de também estarmos rodeados de água, de áreas diferentes, né? E isso nos define como Ikoots, pela nossa convivência com o mar, com o Oceano Pacífico, com a lagoa e com a própria Terra, né? A coexistência com diferentes tipos de ventos: o vento norte, o vento sul. Na nossa língua são duas pessoas, tanto o vento sul é mulher, é a parte feminina que nos traz fertilidade, que nos traz vida, que nos traz camarão, que nos traz peixe, que nos traz o milharal, o milho; e por outro lado o vento norte, que também nos traz diferentes tipos de camarões. Quando está tudo calmo tem peixe, quando tem muito vento norte tem camarão e bom, ultimamente nesses tempos a colheita de camarão e a colheita de peixes vêm diminuindo.

Acredito que viver nessa terra nos retrata como nós somos, Ikoots, né? Homens e mulheres que sobrevivem no dia a dia que têm muita dificuldade em encontrar sustento também porque as nossas terras arenosas não permitem o cultivo de milho em grandes quantidades, temos abóbora, temos pimenta, temos manjericão, mas não em grande escala. Quero dizer, tipo na Serra dá para sobreviver aproximadamente o ano todo, né? A colheita aqui de melancia é pequena, também de batata doce, amendoim e até de hibisco. É isso que nos define aqui, a questão dos conhecimentos que se tem para a construção da casa, para a realização, a preparação da comida tradicional, os teares, a cestaria, e porque não dizer, a parte espiritual com que temos filhos o mar e com a terra.

A nossa linguagem como Ikoots é única no mundo, assim como a nossa forma de eleger autoridades, né? Há coisas que são únicas no mundo, como a relação que temos com o mar, desde que estamos no ventre já existe uma relação com o mar. Desde pequenos existe uma relação espiritual profunda, nós Ikoots temos muitas coisas que nos definem como Ikoots, um Ikoots sem mar, um Ikoots sem entrar aqui no nosso próprio território, bom, não podemos nos conceber como Ikoots, né? Temos muita sorte de estar neste território onde estes ventos convergem, que também são cobiçados por grandes empresas.

00:08:26 Gabriela: Muito obrigada Bety, porque sem dúvida você nos deu um panorama muito enriquecedor do que é o povo Ikoots, né? Essa parte que você mencionou sobre sem território, sobre como é importante ter território, o vento sul, o vento norte, como você mencionou a convivência e a relação que têm com o mar, de onde ele vem e essa parte do vento sul feminino e vento norte com alimento. Além disso, acabamos de ouvir que um pássaro cantou lá não onde você está, então é perceptível essa proximidade que você tem com a natureza.

Bom, muito obrigada Bety. Vou para a outra, a segunda pergunta. Ao longo da história, por exemplo, essa região onde você mora já foi protagonista, muitas vezes, sem querer, de inúmeros projetos de desenvolvimento promovidos pelo Estado e por grupos empresariais, é claro. Você poderia compartilhar conosco, Bety, qual evento ou intervenção em particular você considera que teve maior impacto na vida da sua comunidade no dia a dia?

00:09:36 Beatriz: Bom, eu acho que, e bom, muita gente provavelmente sabe, o fato de nos anos 70 a refinaria que aí está ter sido instalada em Salina Cruz, né? Desde a década de 70 que sabemos que a refinaria estava instalada em Salina Cruz. O que, para o Governo na altura ou até agora, é desenvolvimento, porque nos impactou de alguma forma na questão económica, né, sobre a questão, também do meio ambiente. Conheço um engenheiro que me disse que quando foi construído o primeiro quebra-mar, quando foi construído o primeiro quebra-mar, isso teve um impacto na comunidade de Colonia Cuauhtémoc, porque foi quando essa Colonia começou a inundar, então a partir do momento em que construíram o primeiro quebra-mar em Salina Cruz para a entrada de navios petroleiros, isso impactou de alguma forma a vida de San Mateo, né, para a vida de Colonia Cuauhtémoc em particular. E daí, surgiram muitos impactos diversos também na vida econômica de San Mateo, porque quando Salina Cruz foi declarada cidade e porto de Salina Cruz, os produtos ficaram mais caros.

Então isso afeta a vida das mulheres, porque por um lado muitas mulheres vão a Juchitán ou Tehuantepec fazer compras, pois em Salina Cruz tudo é mais caro. Também no caso do suposto desenvolvimento de Salina Cruz, e eu digo suposto, porque no início da refinaria viu-se que houve um grande boom empresarial, mas agora ruiu com a entrada de outras empresas transnacionais em Salina Cruz e que em certa medida afetam também a vida da comunidade, porque ensinam agora viver com crédito, né? As lojas que oferecem créditos e que agora mesmo para comprar roupas, bom, elas oferecem a crédito, para roupas que não podem ser pagas ou para móveis ou algum item, e então como as pessoas vivem endividadas ainda mais já que cada vez que o petróleo é despejado por um navio ou pela própria refinaria e polui as lagoas isso tem impacto na vida marítima da qual nos alimentamos. Também o fato dos resíduos que a refinaria retira irem para o mar, antes as nossas praias eram brancas, a areia era branca, agora se fores para a praia, para o Pacífico, a areia do mar é preta e tem alguma coisa a ver com esta situação de contaminação da refinaria.

Além disso, por outro lado, o impacto que as empresas eólicas têm, o impacto visual, o impacto ambiental que os aerogeradores também têm na zona norte do Istmo, de onde estamos em direção a Juchitán, porque podemos ver o Tileme Mar, a lagoa superior, bom, tem os aerogeradores em volta, né, turbinas eólicas, que com ruído afetam a vida do sistema lagunar que temos tanto no aspecto visual quanto no ambiental.

Neste momento a pesca diminuiu e não sabemos se essas lâminas realmente mudaram a direção do vento e talvez por isso não tenha chovido, né? Os mais velhos pensam que tudo o que acontece na Zona Norte do Istmo, tudo o que acontece em Juchitán, nos Chimalapas, enfim, nos afeta diretamente porque estamos ligados às lagoas. O outro impacto que temos à primeira vista é também agora o corredor transístmico, o trem transístmico, que com a pandemia não saíamos há 2 anos, mas quando saímos agora vimos que já há mais empresas construídas em volta da nossa cidade lá quando a gente sai, bom, na saída e tem mais empresas construídas, esse corredor transístmico já foi implantado. Toda essa questão das fábricas alfandegadas de alguma forma, porque vai afetar o lençol freático que alimenta a lagoa, as lagoas que temos aqui no norte da cidade e que, bom, também estão ligadas de alguma forma com o Rio Los Perros, com o Rio Tehuantepec e que tudo isso vai nos afetar de alguma forma.

Uma das coisas é o aumento do custo de vida, que já mencionei, e que principalmente afeta mais as mulheres porque somos nós que vamos procurar comida para a família. Talvez em breve comecemos a ver a questão do impacto ambiental também, né, porque a vida aqui em San Mateo Del Mar é sobreviver no dia a dia. Então com o trem transístmico, a vida em Salina Cruz e a mão de obra barata também vão ficar mais caras porque é o que vai sair daqui de San Mateo para lá, até Salina Cruz, porque são 25 minutos a meia hora de distância de Salina Cruz, também a partir do momento em que a estrada foi pavimentada, porque antes os idosos não queriam, não queriam, recusavam ter uma estrada, uma estrada pavimentada, mas agora a gente vê também que é necessário por causa da questão da saúde.

Você mencionou no dia a dia, o que também tem impactado a vida comunitária, toda essa questão de “junk food”, para alimentação infantil, toda essa questão de não incentivar, por exemplo, o autoconsumo, nem os doces que temos aqui na comunidade. Então essa coisa que vem de fora, todos esses produtos que, bem, a gente vai tocar, isso já nos deixou doentes também. Refrigerante, nosso jeito de vestir, nosso jeito de pensar, acho que tudo isso nos afetou.

00:16:30 Gabriela: Isso mesmo Bety, obrigada por essa jornada do grande capital, porque no final o capital não para. Como você nos disse, durante a pandemia da COVID-19, se você não fosse de alguma forma passivo, mas sim respondesse aos apelos globais de saúde, então o capital não parou, o capital continuou a crescer na medida em que continua a impactar a saúde dos seres humanos e não-humanos também, por que não diz isso? E essa parte que você menciona muito bem, sobre como isso impactou a vida socioeconômica deles, o seu modo de vida, o seu jeito de se vestir, o que comem, o que sabem e como isso também transformou o cenário ambiental e ambiental que você tem aí. Então eu ia salientar que os grandes projetos ou megaprojetos, como mencionou em particular, tendem a ter um impacto negativo na saúde humana, né? E vocês estão vivendo isso perfeitamente aí, na medida em que você nos mencionou, vocês estão subsistindo, não estão vivendo, estão subsistindo. Obrigada Betty.

Bom, agora eu continuo com a professora Flávia. Flávia, você atua como antropóloga há mais de 40 anos na região dos Ikoots, de onde a Bety vem. Ao longo deste tempo, o que a cultura Ikoots lhe ensinou? E o que disso você tentou transmitir ao mundo não-Ikoot através do que você fez através de suas obras?

00:18:14 Flavia: Obrigada Gabriela, obrigada por me convidar para essa conversa, digamos assim, para esse diálogo. O que você me pede, a verdade é que é quase uma síntese e um inventário da minha vida que, claro, não posso fazer nesse contexto, nesse momento. Porque como você diz, bom, o arco, digamos, dos anos em que me dediquei aqui, não ao trabalho, porque essa é uma palavra que você não usaria nesse contexto para descrever, digamos, minhas atividades, foi efetivamente muito denso, porque chegando aqui com 21 anos, bom, o que mais estou pensando é justamente isso em certo sentido, com mulheres e homens de idades diferentes e eles sempre me acompanharam e me apoiaram nesse caminho, digamos, eles me apoiaram, bom, foi um grande privilégio. E com eles compartilhamos inúmeros diálogos e trocas e acho que talvez o mais interessante e importante é que construímos uma consciência mútua de alguns aspectos diferentes da vida dos Ikoots de San Mateo. Aqui, por exemplo, um destes em que dizemos muito, muito pouco, é sobre a pesquisa – mas não gosto de falar nesse sentido – é, por exemplo, ter explorado a relação entre escrita e oralidade – e também vou explicar o porquê disso, já que tem a ver com a questões que estamos tratando naquele momento e também suas potencialidades – o poder, digamos, de escrita que as pessoas aqui assumiram ao longo do tempo, dedicando sempre mais tempo à escrita, obviamente na sua língua, pois isso se tornou um instrumento de poder muito importante e principalmente em termos de criatividade e reconhecimento de identidade. Portanto, digamos, por isso, este tema começou com figuras muito relevantes para a história do povoado, com um pescador já falecido, Juan Olivares, que foi o primeiro, aliás, que começou a escrever, digamos, bem por conta própria, mas foi ele quem introduziu a possibilidade num certo sentido, ele quebrou esse silêncio e o medo em relação à escrita, por isso ele mostrou que era possível escrever na sua língua. Ele o fez, digamos, acima de tudo, como uma escrita privada. Mas o que o conteúdo na maioria dos casos era justamente descrever a sua cultura, os discursos que ele ouviu. Então, por si só, isso já é um testemunho muito importante.

A outra figura chave em relação a esta questão da comunicação foi a tecelã Justina Oviedo, que através dos seus teares e das suas obras que são conhecidas não só na região, mas especialmente em Oaxaca e em muitas partes do mundo, sendo uma tecelã absolutamente brilhante – seus textos tecidos falam do povoado, do povo. Ela foi uma, digamos, das primeiras e ainda mulher, sublinhou, portanto, a comunicar-se com o mundo descrevendo seu mundo através de suas perspectivas, de seu ponto de vista; portanto, em seus tecidos lemos como ela via a sociedade, e como ela via o povo e a cidade, e como ela queria expressa-los, por isso a comunicação é importante. A terceira área em que ocorre essa ligação entre oralidade e escrita foi justamente a descrição de como a comida é preparada. Esse tem sido um trabalho oral de muitas mulheres que, pela primeira vez, descreveram com suas palavras como cozinhar, como preparar a comida, e além de ser obviamente um papel muito importante que as mulheres desempenham, quero sublinhar que talvez esse seja o aspecto da sociedade em que se demonstra a relação de interdependência entre homens e mulheres, a transformação justamente do trabalho, dos homens, da pesca, mas também das mulheres, se for trabalho de campo e então desenha, digamos assim, cada receita, cada preparo de comida desenha num certo sentido, o vínculo entre homens e mulheres, a ligação com o território, a ligação com os seus recursos e a forma sustentável, precisamente, de transformar esses recursos.

E enfim, além da interdependência entre homens e mulheres em cada preparação, de fato, há também o cumprimento, digamos, da interdependência que existe entre humanos e não humanos e isso é o mais importante. E é verdade que desde que foram publicadas essas receitas, esses preparos com glossários e muitas outras coisas, bom, aí você pode ver o que a Bety falou, por exemplo, não apenas como a dieta mudou, como em certo sentido, às vezes a família afastou-se do consumo que depende dos recursos aqui da região e como de fato a alimentação piorou com o tempo, além de tortilhas compradas e também peixes, até comprados de fora. Isso é, claro, o que eu queria transmitir, ou seja, parte das coisas que estou dizendo, é o que eu queria contar ao mundo e fora de San Mateo, mas também dentro de San Mateo, porque é por isso que eu estava dizendo antes sobre uma conscientização mútua, porque todo mundo come, todo mundo valoriza o tecido, mas de que forma tudo isso pode ser mais valorizado, começando aqui, dentro da própria comunidade, e não apenas conversando com pessoas de fora? Ou seja, tudo isso que, bom, eu tentei fazer, ele também quer falar, e sobretudo, começando pelos companheiros aqui de San Mateo.

E além disso, no sentido em que muitas outras ocasiões eu me encontrei, bem, assumo minha responsabilidade nisso tudo, na posição de atuar como a porta-voz, digamos, do conhecimento dos Ikoots, sobretudo através de sua linguagem; isso é muito importante. Outro elemento que os antropólogos às vezes esquecem com muita facilidade e também a sua história, a história, certo, de desapropriação, rejeição e minorização, que talvez em vez de diminuir, creio que aumentou, porque o crescimento demográfico de San Mateo não permite que todos os jovens fiquem aqui na cidade. Então a vida fora daqui; estudar fora, encontrar trabalho fora, bom, com certeza encontra muitos problemas, mas com isso espero ter respondido a primeira pergunta.

00:26:44 Gabriela: Claro que sim. E você respondeu muito bem, Flávia, muito obrigada. Bom, na verdade, desde muito jovem você começou a ser e a conviver e a ser testemunha, como você também diz, e a partir daí você se tornou uma porta-voz também, mesmo nem sendo dessa comunidade, bom, para também poder contar essa parte de como existe essa interdependência, como você diz, entre o humano e o não-humano e também como a construção da identidade na relação é tecida a partir da escrita com a oralidade nessa comunidade. Então, obviamente iremos conhecer mais a fundo o seu trabalho. Em um de seus livros mais recentes, Flávia, você tem dialogado com outros autores entre a antropologia e o direito para falar sobre a natureza, e falar da natureza como um possível sujeito de direitos. Então, o que a levou a tecer esse diálogo, que seria um diálogo interdisciplinar, e, em todo caso, que lições esse diálogo também lhe deixou?

00:27:54 Flavia: Obrigada. Como você pode imaginar, isso poderia ser um discurso muito longo, mas eu vou começar pelo final do pedido anterior a este e dizer, por exemplo, que algumas coisas que me aproximaram desse tema são justamente o que estar aqui me ensinou. Ou seja, aqui tenho visto ao longo do tempo conflitos territoriais que eram com vizinhos ou conflitos políticos que eram dentro da própria cidade. Agora, como Bety falou antes através dos megaprojetos e como isso, bem, desencadeou muitos conflitos socioeconômicos, então, especificamente aqui, especificamente nessa perspectiva, eu vi como a cidade, não na sua forma compacta, mas através de muitas pessoas diferentes, ele tentou manter apesar, digamos, de toda aquela dinâmica complicada e às vezes trágica, porque tentou encontrar em sua própria história, né, algo como um eixo que sempre foi de guia, digamos, em todos os momentos de crise – e não apenas em momentos de crise. Alguns eixos, tanto coletivos quanto comunitários, fundados em alguns princípios que vejo muito claramente, são tentativas de manter, por exemplo, o povo num quadro de igualdade socioeconómica; o segundo é uma autoridade que não é autoritária; o terceiro é estar em qualquer caso, uma cidade inclusiva e bastante tolerante. Seu nome, Ikoots, significa “Nós inclusivos”. Então aqui está uma história para contar, mas nada mais.

Para eu me habituar a alguns temas e depois especificamente à interdependência entre o humano e o não-humano, talvez vejamos tudo isto em crise ou, em qualquer caso, num esforço, digamos, de tentar manter, de permanecer fiel, em diferentes formas, a esses eixos, eu perguntei: por que um povo faz tanto esforço? Ou seja, está fazendo o seu trabalho, também tem algumas garantias históricas, né? Essa é uma cidade autônoma, por isso é reconhecida na Constituição, mas apesar disso continua todos os dias, né? Momentos em que justamente tudo isto está sob, por assim dizer, um impulso no sentido de uma mudança que não é a sua praia, que é uma mudança transformadora e possivelmente também destruidora de tudo isso, e então, justamente essa preocupação, empurrou-me para dialogar com o mundo da Lei, o direito, porque, para dizer assim, de uma forma muito simples, mas então espero também que seja eficaz, ou seja, por que a lei não garante isso? Ou seja, o que está faltando? O que é preciso fazer para saber mais, na realidade, sobre a ligação entre a vida pública e, digamos, o contexto jurídico em que as regras, os critérios para o bem viver, para a vida comunitária, são oferecidos justamente para que um povo como estes vivem, então, de uma forma que dê a sua contribuição para a nação? Então aí, principalmente na questão dos direitos que tem a ver espacialmente com esses conflitos, mostrou que, digamos, o mundo jurídico mostrou a sua história, o peso da sua história, ou seja, que é uma história antropocêntrica.

Então eu comecei a conversar especificamente com os professores de direito sobre os vários direitos, porque cada um tem suas competências, obviamente constitucionais, administrativas, privadas. Cada um tem um papel nessa trama, digamos, de problemas e cada um, num certo sentido, declararam que os conflitos socioambientais que vivemos são justamente um legado muito longo de um ponto de vista em que a sociedade e natureza, sociedade e meio ambiente estão divididos. E a natureza – baseada numa noção que talvez nem todos os povos do mundo compartilhem – é uma herança muito antiga do antigo mundo mediterrânico onde, em certo sentido, se estabeleceu o domínio do homem sobre a natureza, que está ao seu serviço, que está ao seu alcance, que é feito justamente para que o ser humano possa viver aproveitando o meio ambiente, e não com o meio ambiente, aproveitando o meio ambiente, tomando posse dele. Claro que aqui estamos fazendo um discurso simples, porque é muito articulado, ou seja, há toda uma história teológica e filosófica em torno disso que estamos herdando. E digamos que o quadro jurídico se baseia neste antropocentrismo. Por exemplo, o fato da personalidade jurídica afirma que a personalidade jurídica é muito mais fácil de ser reconhecida no ser humano, que pode interagir diretamente com a lei, com o Estado, com as instituições, do que pode uma árvore, um mar, o vento, etc. E aí vemos que embora os Estados sejam multiculturais, como o México, por exemplo, mas não são “plurijurídicos”, não têm, não se baseiam numa lei que leve em conta também a lei que eles as próprias comunidades indígenas promovem através da sua ontologia, da sua perspectiva sobre o vínculo e o Pacto que une humanos e não humanos.

Portanto, não podemos entrar em mais detalhes sobre este diálogo, mas é verdade que tampouco seria suficiente, por exemplo, como as Constituições do Equador e da Bolívia, que em 2009, lançaram na Constituição um direito que reconhece na natureza justamente como um protagonista, um assunto que dizemos dialogar e defender, e também se alguém ler, especialmente o da Bolívia, entende-se que por natureza todos os pontos de vista dos grupos indígenas da Bolívia estão sendo citados, porque a natureza se entende algo como Monapaküy, ou seja, como Bety vai nos dizer, talvez em breve, ou seja, não simplesmente o direito, o reconhecimento da natureza como sujeito, mas o que essa noção significa sobre uma cosmovisão, uma ontologia muito complexa onde dentro existe território, existem as pessoas, existe a clima, existem os acontecimentos atmosféricos, existem as pedras, etc. E uma coisa que aprendemos com esta ligação, é que é verdade que há uma sensibilidade cada vez maior nesse diálogo onde é muito difícil para o “mundo ocidental” (entre aspas), mas praticamente para todo o mundo onde existe um Estado, reconhece que existe uma personalidade jurídica que foi sobretudo um ser humano. Mas é verdade que há sempre mais sensibilidade na promoção do aspecto que tem a ver, por exemplo, com a responsabilidade, não somente individual, mas também coletivo, da descentralização justamente pela nossa posição no mundo. E aí o diálogo se fortalece, por exemplo, com todos as filosofias jurídicas, dos povos originários da Oceania, onde a ideia de responsabilidade, justamente a relação humana-não humana, pode nos mostrar algumas pistas, digamos, para renovar nossa estrutura jurídica e, sobretudo, a nossa posição no planeta. Porque é a verdade que o principal problema que está na raiz de toda essa desapropriação ambiental e, consequentemente, o que prova que este problema não pode ser separado da desapropriação humana, é que quando há desapropriação ambiental, existe em qualquer caso desapropriação humana, desapropriação de mulheres e crianças, etc., etc.

Assim, eu vejo que há muita sensibilidade por parte do mundo jurídico, com a qual tenho me engajado. Eu troquei ideias justamente sobre como superar esse antropocentrismo e ver como mudá-lo, para vira-lo, digamos, a favor justamente do que nos sugerem os povos originários e sobretudo através de sua história. Ou seja, eles resistiram à velha e à nova colonização, e sem serem nem um pouco paternalistas, concebendo os como guardiões da natureza – isso seria um erro – é realmente mais um dos fatores que não permitem sequer um diálogo igualitário entre as estruturas estatais, ou pior, as empresas, e cidadãos do planeta, entre os quais tantos são os povos originários que conhecemos e que ainda podem nos ensinar muito a esse respeito.

00:38:47 Gabriela: Novamente vamos abordagem desta relação complexa entre os direitos da natureza e os direitos das sociedades, como você disse, os direitos da natureza e do meio ambiente. Esse grande paradoxo que existe entre as comunidades, assim como a comunidade Ikoot, desde o “nós”, como você mencionou, eles são inclusivos e como então a lei ocidental ou ocidentalizada pode e é excludente da desapropriação, por exemplo, e da desapropriação de tudo, como você mencionou, o que implica até o desaparecer do ser humano e do não-humano.

Relacionar-nos com a natureza como se fosse um objeto manipulável ao nosso capricho, nos levou a níveis extremos de exploração, violência e insustentabilidade. Esses processos em escala global impactam a vida das pessoas na carne. Professora Bety, como essa lógica da morte se materializou na saúde dos Ikoots e na saúde do mar e da Terra que você habita e compartilha com outros seres? E como você consegue o contrário, a saúde, o que você chama de Monapaküy?

00:40:08 Beatriz: Essa lógica da morte em relação à saúde foi concretizada, porque as Ikoots ou os Ikoots mudaram a alimentação. O fato de não consumirmos mais os alimentos, a nutrição aqui na comunidade fez com que a gente tivesse outro corpo. Eu me lembro das pessoas mais velhas, mais ou menos da idade da minha mãe, aproximadamente 95 anos, porque eram pessoas magras, pessoas que não tinham, não tinham muita barriga. Minha mãe era uma das pessoas que não comia coisas da geladeira e não bebia refrigerante e sempre tomava algo morno ou quente depois de comer. Minha mãe tentava comer o mais saudável possível sem saber, mas tem a ver com essa questão dos sabores, do sabor da comida. Nós tínhamos uma geladeira que, mas se ela guardasse comida na geladeira, ela não comia. Ela não comia ovo da fazenda, só caldo de galinha, sim, eu comia e a comida que ela fazia, porque bom, se você quiser comer algo gostoso, cozinhe você mesmo, faça você mesmo. Agora vemos muitas pessoas no mercado que compram seus alimentos já preparados, da vida antes para a vida agora, e isso mudou muito a nossa dieta e tem muita fritura e tem muita comida enlatada, tem muitos “junk foods” nas escolas, nas esquinas e isso mudou a aparência do corpo. Cada vez mais os Ikoots, já temos um pouco de pança, já estamos mais gordinhos, gordinhas, devido à mudança em nossos hábitos alimentares. Também nesse aspecto, porque tanto os sucos, quanto os doces, o leite, fez com que o paladar mudasse de sabor, né, não são mais aqueles gostos que a gente tinha antes, por exemplo, de comer o totopo [triângulos de tortilla], de comer o totopo do epazote, de comer o feijão totopo, de comer a batata doce, a abóbora. Agora o nosso paladar se acostumou com produtos mais doces. A gente não come mais aquela comida que comíamos, não só esses 13 sabores que a gente tem aqui na cidade, porque muda, muda o sabor do paladar e isso de alguma forma tem afetado muito a saúde dos Ikoots. Em relação à saúde do mar, de relance também podemos ver o lixo – posso dizer que em menor escala produzimos lixo a partir de plásticos, pratos descartáveis, embalagens, sacos – mas também no mar quando a maré sobe, traz-nos uma quantidade de plástico que podemos ver na praia, desde seringas a sapatos, tampas de refrigerantes, os mesmos recipientes de xampu – quanto plástico podemos encontrar na beira-mar que a maré nos traz.

Então, essa seria a saúde do mar. Quanto à poluição do mar, bom, os óleos da refinaria, aqui na Terra, aqui onde vivemos, bom, também podemos ver grande parte da poluição, também de pneus, de plástico. Acima de tudo, foi o que mais nos contaminou, mas essas são coisas que vêm de fora e a verdade é que aqui na comunidade as medidas não foram tomadas para dizer, “bem, vamos diminuir o uso de plásticos”, né? Há mínimo esforços, eles estão fazendo isso, mas esses esforços não são suficientes.

Ainda em relação à contaminação da nossa alma, dos Ikoots, nós podemos falar de uma contaminação do nosso ser, da nossa espiritualidade, até porque os mais novos já não têm esse respeito, eu me incluí, já não existe esse respeito pela natureza, não existe mais aquela espiritualidade com ela, ela vai se deteriorando aos poucos. Então nesse aspecto, eu também acho que há uma contaminação da nossa alma, da nossa essência como Ikoot, de nos relacionarmos com a nossa Terra, com as nossas divindades, com o nosso mar. Mas ao mesmo tempo, também estamos vendo como enfrentar esta situação, esta questão dos outros seres com quem partilhamos a Terra, com quem partilhamos o mar. As tartarugas também vêm aqui para aninhar e as tartarugas são um animal sagrado para nós também, porque elas vêm pôr os seus ovos, também nos dão a nossa comida, mas por outro lado, não há conservação dos ovos destes animais. Então nesse aspecto, antes tinha um pouco mais de respeito pela tartaruga, mas agora ela também está indo embora, está piorando aos poucos, e tem muito a ver com a formação das pessoas, tem muito a ver com o treinamento que é dado nas escolas. Posso dizer, a entrada de outros elementos que não vêm de fora também, mas como disse uma senhora, “bom, nós também pegamos esses elementos e, além do mais, não reivindicamos esses elementos que temos de respeito pela natureza”.

00:46:10 Gabriela: Obrigada Beatriz por esta intervenção. Flávia, na base da sua experiência como mulher e profissional, entre pelo menos dois mundos – a Itália, que é seu país de origem, e o México, seu país de adoção, por assim dizer – você tem alguma mensagem ou algum apelo a respeito da possibilidade de compartilhar diálogos e ações nessa era marcada por conflitos, por atomização e destruição, que você deseja compartilhar conosco?

00:46:38 Flavia: Claro, responder isso é bem, bem difícil. Mas o que posso dizer é que todos estão vivendo uma crise, digamos, de orientação geral, vemos isso em nosso país, com os jovens, principalmente aqueles entre 20 e 30 anos. Estão perplexos, eles veem a inércia absoluta da política. O mundo continua a caminhar para um fracasso poderoso, que podemos ver nas guerras que vivemos perto dos nossos países. É como se em todo o mundo e, sobretudo, algumas pessoas que estão assumindo a cena política de forma autoritária, como ditadores, parecessem ter perdido o rumo, perdido a sensação de risco que vivemos e que, especialmente os cientistas, por exemplo, os climatologistas e outros das ciências biológicas – para não irmos tão ao fundo, digamos, da certeza – estão justamente dizendo “pare, temos que mudar de rumo, refletimos, não podemos continuar assim”, mas parece que isto é como um apelo ao qual respondem sobre tudo os jovens, obviamente preocupados porque não veem o futuro, simplesmente não o veem, não sabem para onde ir, o que fazer, etc.

Compartilho dessa mesma preocupação, ou seja, algo que não se dorme à noite e isso é verdade. E aqui em San Mateo, é como se fosse um microcosmo que vive isso, porque a chamada globalização – palavra-chave – é concreto, ou seja, ninguém está fora desse ritmo rumo a um fim que a gente não conhece e que a gente vê – pelo menos eu vejo – isso de forma muito negativa há algum tempo. Não sei, deve ser uns 3 anos ou algo assim, um jovem com quem conversamos em Cuauhtémoc – esse mesmo bairro de que a Bety falou, que foi afetado justamente pelo porto de Salina Cruz; e o rio, por exemplo, o Tehuantepec, que já não tem escoamento como antes, devido à Barragem Benito Juárez, que foi construída principalmente para a refinaria ou para fins industriais – enfim, ele me perguntava há alguns anos, “Flávia, o que você acha? Ainda estaremos aqui daqui a 5, 6 e 7 anos?” Quer dizer, fiquei espantada com essa pergunta. Quer dizer, eu não sabia se chorava ou o que responder, porque é uma questão profunda e radical que todos nós devemos colocar-nos.

Então, se alguém quiser dar uma chamada, mandar uma mensagem, seria essa: a saída é uma mudança total, justamente assumindo a responsabilidade como indivíduos e como pessoas e, ao mesmo tempo, coletivamente, por uma mudança de descentralização, digamos, das nossas necessidades e como o ser humano, bom, foi capaz de crescer numa espécie de caminho evolutivo justamente porque soube se colocar no lugar dos outros. Bom, isso tinha que ser uma prática política diária que temos que fazer, colocando-nos no lugar dos outro, ou seja, duvidar que nossas necessidades estejam tirando de outros riquezas, recursos, etc., então mudar nossas necessidades e isso começa justamente por refletir sobre como auto – e estou falando sobre meu mundo – auto descolonizamos o nosso conhecimento; somos nós que, antes de mais nada, temos que descolonizar o nosso conhecimento; e aqui está, digamos, a alternativa, a alternativa – por mais que se possa brincar com isso – quero dizer, com os mundos nativos, que são também os mundos camponeses da nossa própria sociedade, como dizemos em italiano, ou algo assim. São ainda tesouros imensos justamente de convivência, de conhecimento, de conhecimentos que permitiram até agora nos chegar nesse planeta vivo.  E eu digo isso, desde já, e aqui também as Nações Unidas, etc., estão dizendo à mesa das decisões políticas, as populações nativas têm que estar lá, não apenas para fazer folclore, mas para estar lá com os seus conhecimentos; eu digo que é a hora de ceder o espaço de igual poder de decisão às populações que podem nos mostrar uma rota para sair desta crise e ver se com isso podemos conseguir, não estou dizendo salvar o planeta, mas mudá-lo do horrível curso em que está imerso. E bem, por parte da nossa profissão de antropólogos, há muitos que estão fazendo isso, ou seja, sempre dando cada vez mais espaço igualmente a essas vozes e a partir daqui temos que recomeçar o nosso caminho.

00:52:32 Gabriela: Claro, e muito obrigada, Flávia, por esta intervenção. Por fim, professora Bety, para encerrar com esperança, gostaria que você compartilhasse brevemente conosco o que é a organização Monapaküy, o que ela faz e como, em qualquer caso, podemos entrar em contato com você e apoiá-la.

00:52:51 Beatriz: Bem, para encerrar com esperança, gostaria de falar um pouco sobre a escola antes de Monapaküy. Um pouco atras eu mencionei as “junk foods”. Na pré-escola onde trabalho há aproximadamente 20 anos, incentivamos meninos e meninas a não levarem mais “junk foods” para a escola. Aos poucos temos sensibilizados as mães, os pais e a assembleia escolar para evitar estes produtos, desde antes de existir uma lei contra os “junk foods” em Oaxaca, agora é proibido para qualquer pessoa dar “junk food” às crianças, acima de tudo nas escolas, agora eles não são mais dados. Começamos há 20 anos e as crianças trazem produtos como esse camarão, fruta picada, tortilla, pão, água doce, atole. Então como algo de esperança por parte da escola, isso foi feito. Também tem sido promovida a criação de murais e placas em ombeayiüts e a escola também tem promovido o desenvolvimento e formação do alfabeto ombeayiüts, então acredito que a escola tenha contribuído com seu grão de areia daquele espaço, para o fortalecimento e a desenvolvimento da cultura em geral.

Então, seguindo em frente, gostaria também de falar sobre o que Monapaküy seria para nós. Bom, Monapaküy é uma organização comunitária que nasceu depois do terremoto de setembro de 2017. Em Monapaküy, principalmente por causa do terremoto, algumas mulheres se reuniram e concordamos em algumas questões; somos mulheres que depois de trabalhar somos voluntários, nós fazemos voluntariado as tardes para apoiar outras mulheres e a comunidade. Monapaküy é uma palavra que significa bem-estar, saúde, vida boa, também significa força; e há muito tempo gostamos de toda a carga que essa palavra tem, principalmente a de saúde, a de uma vida boa, esse Monapaküy, essa força que nós mulheres podemos ter entre nós para poder ter esta organização. É uma organização que não está registrada, mas que formamos com o terremoto, como eu disse, houve a oportunidade de fazer uma cozinha comunitária na escola depois do terremoto. A outra colega Roselia do conselho municipal era uma topil [um xerife ou autoridade local indígena], pois também organizava outra cozinha e apoiava outras organizações.

Como resultado da formação de Monapaküy fomos integrados com o apoio do Centro de Direitos Humanos Tepeyac, naquela época, e posteriormente do Centro de Apoio ao Movimento Popular de Oaxaca (CAMPO), que nos acompanhou durante estes anos no trabalho que estamos fazendo em Monapaküy, o voluntariado que estamos fazendo em Monapaküy, antes, junto com outras organizações como COPEVI, cooperação comunitária e pessoas que apoiaram a reconstrução, com a mão de obra, com o voluntariado, com algum dinheiro também. Bom, também em relação ao apoio dado em Monapaküy, estivemos apoiando e fomos um elo para a construção de 27 banheiros secos no período de 2018 a 2019. Outra organização também nos apoiou para a construção de 18 cozinhas terrestres. Esses banhos secos foram construídos com telhados de palmeiras e com terra também, assim como essas cozinhas eram algumas com telhados de palmeiras, outras com telhados de telhas com terra, de tal forma que essas cozinhas, por estarem de acordo com o meio ambiente, são construções sustentáveis ​​que não criam tantos detritos como o cimento. Então, com essa visão também de apoiar o ambiente e reduzir um pouco toda a questão da pegada de carbono, nesse sentido foram promovidos os fogões de terra em colaboração com a cooperação comunitária e os sanitários secos em colaboração com a COPEVI, outra organização que tem apoiado nós. E mais recentemente está sendo construído um centro que é o Centro Monapaküy, mas também é um centro de energias alternativas, e no contexto que temos aí, o CAMPO nos doou, todo um sistema de painéis solares; esses painéis solares que o CAMPO nos doou permitiram-nos ter uma oficina de costura, de corte e costura, que é ministrada em conjunto com o ensino secundário comunitário aos alunos do ensino secundário comunitário. E isso permitiu que nove jovens trabalhassem com suas máquinas de costura, cuidassem do ferro, pudessem carregar o celular, pudessem ter os ventiladores ligados nesse espaço e isso tem apoiado muito essas jovens treinarem, não apenas na vertente académica, na escola, mas também no fato de poderem mais tarde ter um emprego. Também existe uma oficina de carpintaria que está sendo apoiada por outras organizações que nos apoiam, e mais recentemente foram feitas algumas placas para cuidar do ambiente em ombeayiüts e além dessa oficina de costura e da oficina de carpintaria, temos uma oficina de língua ombeayiüts para promover a oralidade dos ombeayiüts junto de crianças e jovens que não são falantes, mas que podem aprender ombeayiüts como segunda língua. Essas alternativas solares também permitiram que 11 famílias tivessem paneis solares nas suas casas, pessoas que não têm eletricidade, não têm eletricidade, que vivem quase à beira-mar, já que também foram abastecidas com paneis solares. Também foram entregues fogões que não fazem fumaça, que ajudam as mulheres a não contrair doenças respiratórias e que economizam lenha, tudo isso com o apoio do CAMPO. Eu sinto que todas estas coisas, estes apoios que foram dados, nos dão esperança e o fato de estarmos em Monapaküy traz conosco a esperança de que possam ser mudados, porque de alguma forma podemos apoiar ou mudar o modo de vida das pessoas, o mínimo ou tanto quanto possível, para que elas fiquem bem.

Em relação à questão dos ombeayiüts, também estamos colaborando para disponibilizar recursos didáticos da escola, também para fortalecer os ombeayiüts e todas essas coisas que estão sendo feitas, porque o que nos move é a esperança de que possamos construir outro mundo. Dentro de tudo isso que nos acontece, dentro das tragédias, a esperança é o que nos eleva. A esperança é o que nos permite caminhar, mas também a solidariedade das organizações e a solidariedade das pessoas. É isso que nos faz caminhar. Agradecemos a atenção à nossa conversa, ao nosso diálogo, ficamos muito gratos pelo convite para esta oportunidade de estar aqui e poder compartilhar algo da nossa gente com quem vai nos ouvir, muito obrigada.

1:01:46 Flavia: Bom, sim, muito obrigada por esse espaço e esperamos que seja interessante trazer cada vez mais pessoas interessadas a refletir sobre estes problemas e também a conhecer outras realidades que, como vocês ouviram, estão tentando se defender, resolver problemas e, sobretudo, dar-se esperança para o futuro. Eu compartilho dessa mesma esperança e é por isso que estou aqui também, para acompanhe-os o máximo que puder de acordo com meus limites, obrigado e até breve.

01:02:26 Gabriela: Bom, somos muito gratos à vocês duas por estarem aqui conosco, como mencionei desde o início, é um luxo ter tido vocês que nos deram essa perspectiva, essa realidade dessa área tão específica do Estado de Oaxaca e que ao mesmo tempo nos deram perspectivas esperançosas.

Com isto temos a certeza que os nossos públicos não se interessarão apenas por estas realidades, mas em geral por outras que partilhamos atualmente. E bem, da nossa parte agradecemos também aos ouvintes de áudio que nos deram a sua atenção. Convidamo-lo, claro, a continuar a refletir conosco sobre os episódios que virão e temos a certeza que a partir de outras disciplinas e iniciativas também nos fornecerão perspectivas sobre os desafios que o Antropoceno e as desigualdades corporificados na saúde dos seres humano e não-humanos. Obrigada.

01:03:32 Juan Mayorga: Este episódio foi gravado virtualmente entre a cidade de Oaxaca e o San Mateo del Mar, no Estado de Oaxaca, Mexico. A produção geral e entrevista foram feitas por Gabriela Martínez, a direção editorial foi de Laura Montesi e Paola Cesia, e a edição de áudio e pós-produção foi de Juan Mayorga. Este podcast é uma colaboração internacional entre a University College London, no Reino Unido, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, Brasil, e o Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social, em Oaxaca, México.

Pontos de Aprendizagem

  • Quais são as consequências “corporificadas” que os megaprojetos de desenvolvimento tiveram sobre o povo Ikoots?
  • Quais tipos de desafios encontramos nos diálogos interculturais e interdisciplinares voltados para lidar com as crises socioambientais contemporâneas?
  • Quais limites o direito ocidental apresenta para a autonomia dos povos indígenas e a proteção da natureza?