Episódio 5: “Antropologia médica e medicina social (re)tratando as feridas coloniais” com Cesar Abadia

Como podemos tratar as feridas ou os efeitos do Antropoceno na saúde dos grupos sociais afetados pela imposição das dinâmicas sociais ocidentais e pelo modo de vida capitalista? A América Latina lutou por séculos contra doenças, genocídio e, acima de tudo, epistemicídio causado pela imposição de práticas de saúde que desconsideram os conhecimentos culturalmente localizados. Neste podcast, Cesar Abadia-Barrero fala sobre a necessidade de ir além da perpetuação das dinâmicas colonialistas nas questões de saúde, reforçando a importância de indigenizar o Ocidente, trazendo “epistemologias do cuidado” para o debate acadêmico e para as políticas públicas. Isso diz respeito ao conhecimento culturalmente localizado, construído a partir das condições características do sul global, sua natureza, seu povo e animais, sua cultura e história.
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Dr. César Abadía-Barrero é professor associado no Departamento de Antropologia da Universidade de Connecticut, onde também é diretor da Iniciativa Buen Vivir e Cura Coletiva. O trabalho do Professor Abadía-Barrero foca nas interseções entre capitalismo, saúde como um direito humano e comunidades de cuidado. Ele realizou pesquisas em diferentes contextos no Brasil, Colômbia e Estados Unidos. Publicou vários artigos e capítulos de livros e é autor e editor de obras notáveis, como: “I Have AIDS but I am Happy: Children’s Subjectivities, AIDS, and Social Responses in Brazil”, publicado em inglês em 2011 e em português em 2022, e “Health in Ruins: The Capitalist Destruction of Medical Care”, publicado em inglês e espanhol em 2022.

Transcrição

Este episódio foi gravado em inglês. Abaixo está a tradução em português do podcast.

Episódio 5: “Antropologia médica e medicina social: (re)abordando as feridas coloniais”

00:00:00 Laura Montesi: Desigualdades Corporificadas do Antropoceno. Construindo competências em antropologia médica. Uma série de podcasts que analisa os impactos na saúde humana e não-humana dessa época geológico-política de profundas transformações.

00:00:30 Ceres Víctora: Bem-vindos a mais um episódio do podcast Desigualdades Corporificadas do Antropoceno, um espaço colaborativo entre a University College London, Reino Unido, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul em Porto Alegre, Brasil, e o Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social Pacífico Sur em Oaxaca, México. Neste projeto exploramos a saúde nesta época que está sendo definida como o Antropoceno. Atualmente desenvolvemos conhecimentos em antropologia médica em áreas como a experiência indígena e a colonialidade do Antropoceno; o género, a reprodução e a justiça ambiental; a etnografia multiespécie e a saúde humano-animal; a COVID; e a compreensão pública do Antropoceno, e a toxicidade e a exposição química.

Nosso convidado de hoje é o Doutor César Abadía-Barrero, professor associado do Departamento de Antropologia da University of Connecticut, onde também é diretor da Buen Vivir and Collective Healings Initiative. O trabalho do Professor Abadía-Barrero centra-se nas intersecções entre o capitalismo, a saúde como um direito humano e as comunidades de assistência. Ele realizou pesquisas em diferentes contextos no Brasil, na Colômbia e nos Estados Unidos, publicou diversos artigos e capítulos de livros, e é autor e coeditor de livros notáveis no campo da antropologia médica, como A Companion to Medical Anthropology em 2011, Salud Normalización y Capitalismo en Colombia em 2013, Tenho AIDS mas sou feliz: a subjetividade infantil, a AIDS e as respostas sociais no Brasil publicado em inglês em 2011 e em português em 2022, e Health in Ruins. The Capitalist Destruction of Medical Care, publicado em inglês e espanhol em 2022. O Professor Abadía-Barrero recebeu diversos prêmios na Colômbia, no Brasil, em Venezuela e nos Estados Unidos por sua excelência em pesquisa e sua carreira acadêmica.

Bem-vindo, César. Obrigado por aceitar nosso convite para falar sobre suas pesquisas e seus livros. Estou muito entusiasmado por ter essa conversa e ter a oportunidade de aprender mais sobre o seu enquadramento teórico e os conceitos que utiliza para dar sentido à investigação etnográfica que conduziu em diferentes contextos. Eu sou Ceres Víctora, sou professora de Antropologia da Saúde e do Corpo e junto com Jean Segata e Ivana Teixeira trabalho com o grupo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul no Brasil. Obrigada, Ivana e Jean, por nos ajudarem a montar esse episódio. Hoje vou conduzir a entrevista.

Para iniciar a nossa conversa, César, você pode nos contar um pouco sobre você? Onde você nasceu, onde estudou, se teve algum mentor, como se interessou pela antropologia médica e pelas relações entre capitalismo e saúde?

00:03:40 César Abadia-Barrero: Hola Ceres. E olá a todos que estão ouvindo este podcast, e obrigado também à Ivana e ao Juan por me convidarem e por organizarem este podcast. Sou colombiano, nasci em Bogotá, o capital, e lá estudei odontologia. E eu acho que meu primeiro mergulho na antropologia médica foi talvez nessa época, na faculdade de odontologia, embora eu provavelmente não conhecesse o campo da antropologia médica. A formação dos profissionais de saúde na Colômbia, mas também em muitos países latino-americanos, é fortemente influenciada pelas ciências sociais. Eu treinei no final dos anos 80 e no início dos anos 90 e, sabe, a educação comunitária e a assistência comunitária foram muito importantes em nossa formação. Houve muita influência da pesquisa-ação participativa da educação popular com Paulo Freire. Estudamos muito as ciências sociais, tentando compreender a realidade da desigualdade no país. É claro, existiu e ainda existe que a grande corrente da medicina social latino-americana.

E aí, eu acho que um dos meus mentores queridos daquela época, que realmente me iniciou nesse caminho e, na verdade, uma das tarefas era fazer trabalho de campo. E a primeira vez que fiz anotações de campo e mantive diários foi na faculdade de odontologia com essa professora, Lila Piedad de la Rosa, que é uma incrível dentista voltada para a comunidade. Então esses foram meus primeiros mergulhos. E então fiz meu doutorado em Harvard em antropologia médica e encontrei essas semelhanças entre a tradição da medicina social na América Latina e a perspectiva da antropologia médica crítica. Eu tive a honra de ser treinado por… Meu mentor foi Paul Farmer, e Byron Good e Mary-Jo Good eram membros do meu comitê. E assim, com eles, eu aprendi antropologia médica crítica e fui capaz, de certa forma, de criar meu próprio caminho, aprendendo muito com as discussões euro-americanas de antropologia médica crítica, mas misturando-as com as tradições e perspectivas críticas da América Latina. E aí eu mencionaria apenas meu último mentor, talvez, quando eu estava fazendo minha tese de doutorado, que fiz no Brasil, e que resultou naquele livro. Também tive muita sorte de José Ricardo Ayres, da Universidade de São Paulo, ter sido meu mentor no Brasil. Então também terminei minha formação com ele e fiz pesquisas, tentando aprender muito sobre a tradição da “Saúde Coletiva” no Brasil. Então, sabe, uma mistura eclética de pessoas interessantes me influenciou. E depois muitos outros colegas e amigos com quem continuo aprendendo ao longo dos anos.

E eu diria que o interesse entre capitalismo e saúde, eu acho que para muitas pessoas com esse tipo de formação que vem do campo da saúde, da prática profissional da saúde, e vai em direção à antropologia médica, é pelas lentes das desigualdades, esse cenário realmente problemático na prática clínica, quando você sente que a pobreza e as desigualdades estão moldando muito o que você pode ou não fazer como profissional de saúde. E aí, quando eu terminei a faculdade de odontologia em 1992, foi aprovada a lei das privatizações, a reforma da saúde na Colômbia, como parte da tendência neoliberal global, certo? Assim, eu acho que foi isso que me levou a estudar mais as ciências sociais e a antropologia para poder entender o que estava acontecendo política e economicamente no país. E obrigado por essa pergunta, Ceres.

00:07:41 Ceres: Obrigada. Na verdade, no Brasil, os dois campos – o campo da antropologia médica e das ciências sociais e da medicina, por assim dizer – seguiram caminhos diferentes, mas na prática, eles se unem. Sabe, obviamente somos de departamentos diferentes, às vezes não vamos às mesmas conferências, mas há muitas pessoas que se formaram em antropologia médica e que fizeram trabalho de campo e pesquisas em geral em colaboração com médicos ou profissionais de saúde que atuam no campo de saúde coletiva. E assim, posso ver o que você está dizendo e, sabe, realmente vejo isso na minha prática diária.

César, no projeto Desigualdades Corporificadas do Antropoceno, assim como em seus projetos de pesquisa, adotamos uma perspectiva crítica da antropologia médica para examinar os aspectos históricos que moldaram as práticas de saúde atuais e as conexões e desconexões entre as lógicas globais e locais da assistência médica. Você pode nos contar como as conexões entre o passado e o presente, o global e o local, tornaram-se evidentes em seu trabalho de campo na América Latina? Em outras palavras, estou perguntando se e como você viu o passado colonial da América Latina nas práticas cotidianas de saúde? No seu trabalho de campo no Brasil e na Colômbia, você pode dar alguns exemplos de seus livros ou exemplos etnográficos que acabaram não fazendo parte das publicações.

00:09:22 César: Sim, isso é excelente, Ceres. Obrigado. E eu acho que essa é uma grande questão para todos nós que fazemos antropologia médica crítica, como nós pensamos sobre a história e como a história se torna evidente e visível no trabalho e nas interações. Então, por exemplo, no meu trabalho no Brasil, que foi com crianças e adolescentes afetados pela epidemia de HIV/AIDS, essa foi a minha pesquisa de doutorado que mais tarde virou esse livro. Naquela época, havia poucos estudos com crianças e havia os grupos considerados de risco, como as crianças de rua. Então eu pude, de certa forma, conviver, enquanto nós fazemos trabalho de campo em antropologia, em um dos abrigos para crianças de rua em São Paulo, e contrastar suas vidas com as ONGs que foram criadas para cuidar das crianças que viviam ou ficaram órfãs devido à epidemia do HIV/AIDS. E sabemos que a história colonial no Brasil contra as crianças de rua, com o assassinato e criminalização de crianças negras pobres nas cidades, principalmente em São Paulo, que na verdade foi um dos grandes epicentros do assassinato de crianças de rua. Isso fazia parte das histórias raciais de colonialidade no Brasil e do racismo arraigado pelo qual crianças pobres, negras e mal cuidadas nas ruas são consideradas dispensáveis? E não só isso, mas reconhecer que são ativamente assassinados, certo?

Então, quando eu comparo a vida delas com a das crianças que agora eram protegidas por essas ONGs, por exemplo, suponho que o principal resultado daquela investigação foi a situação paradoxal, certo, em que as crianças de rua viviam de fato vidas mais precárias e tinham menos esperança no seu futuro do que as crianças que vivem com o HIV ou a AIDS, certo? E na época era como uma sentença de morte e, sabe, só com antirretrovirais e coisas assim, a maioria deles eram órfãos. As crianças de rua, bom, a maioria tinha família, né? Mas as condições disso… e então disso me permitiram pensar: por que houve essa mudança histórica? O que é que fez com que as crianças que vivem com o HIV/AIDS parecessem ter melhores opções de vida e futuro do que as crianças de rua que apenas corriam o risco de contrair o HIV/AIDS, certo?

E acho que essa é uma das maneiras pelas quais as histórias do colonialismo estiveram presentes, e como isso também mostra que os esforços de democratização no Brasil e os esforços, por exemplo, das políticas de identidade do multiculturalismo naquela época, através das quais lutas específicas – por exemplo, a luta para enfrentar o HIV/AIDS sob a liderança do movimento gay no Brasil – realmente conquistou muitos direitos, certo? Mas nesta ênfase multicultural, muito neoliberal e fragmentada. Então, sabe, a discussão final do livro propõe que esses esforços de democratização não são suficientes, certo, para a transformação geral da realidade, certo? Então você vê a história como se tornando parte e incorporada no que vemos como peças em desenvolvimento da história, certo? Por isso, eu sempre argumento contra pensar na história como contexto, mas sim como a dinamicidade de como as relações de poder evoluem ao longo do tempo e continuam a ser transformadas e continuam presentes. E talvez eu fale um pouco mais do caso colombiano em outras questões, só para não me estender tanto e deixar essa questão específica para pensar no Brasil.

00:13:13 Ceres: Absolutamente. Obrigada. Isso é muito esclarecedor. Embora eu seja brasileira e Ivana, que também está presente aqui, às vezes perdemos de vista esse todo… a menos que seja algo realmente aplicado ao nosso cotidiano. Cesar, você nos contou um pouco sobre esse primeiro livro – o primeiro livro que li, pelo menos – que foi Tenho AIDS mas sou feliz. E agora eu quero te perguntar algo sobre seu outro livro. O outro livro que eu acho muito importante para o campo da antropologia médica, que é Health in Ruins, e você mostra como a assistência está sendo transformada. E então, você poderia nos contar sobre a noção de epistemologia da assistência vista do Sul e da perspectiva subalterna?

00:14:38 César: Sim, obrigado Ceres. Este segundo livro, um livro monográfico, Health in Ruins. The Capitalist Destruction of Medical Care at a Colombian Maternity Hospital. O que é realmente interessante, na minha formação em odontologia, tive a oportunidade de fazer um rodízio clínico nessa maternidade. Então essa não foi apenas a maternidade mais antiga e lendária que realmente começou na época colonial, certo, com a coroa espanhola e depois evoluiu, sabe, como supervisionar, ser uma testemunha e um participante na evolução da história do país. E então, eu treinei lá. Mas devido à reforma de privatização que mencionei anteriormente, todos os hospitais públicos e o sector público foram desfinanciados, de modo que os sistemas privados, com fins lucrativos e baseados em seguros, emergiram como o centro do novo sistema. Então eles estavam fechando muitos hospitais. Então, quando vi que iam fechar este hospital, eu comecei um trabalho etnográfico, tentando estar presente e agir em solidariedade com os professores e funcionários do hospital que tentavam manter o hospital vivo e aberto.

E então, ao longo desses, sabe, cerca de 15 anos, sabe, fazendo pesquisa-ação participativa ativa com as pessoas, o que emergiu foi que – o que nós estávamos testemunhando não era apenas o fechamento do hospital, mas o encerramento das histórias particulares da assistência medica. Como é a assistência medica? Então, o que foi interessante foi entender que embora na perspectiva ocidental, a formação médica e a educação médica sejam a mesma – ou seja, qualquer médico que seja formado em seu paradigma ocidental no Brasil, no México, no Reino Unido, nos Estados Unidos, você aprenderá exatamente os mesmos princípios fisiopatológicos, diagnósticos e terapêuticos, certo? – a maneira como a medicina é praticada é diferente com base naquilo que você é treinado. Então, a questão se torna, como cada história política das instituições, de cada escola médica, de cada hospital universitário, molda o tipo de formação e as subjetividades políticas dos médicos? Certo? E foi aí que comecei a pensar que havia uma concepção diferente do que deveria ser a medicina e como deveria ser praticada. E isso me levou a pensar em diferentes epistemologias da assistência que estão sempre contestando poderes impostos, por exemplo, por formações médicas hegemônicas no Norte Global, certo? Assim como a medicina deveria ser isso, isso e aquilo. Quando sabemos que dependendo de onde você treina, você vai desafiar aquele treino com base na sua realidade. Pensar que talvez as condições daqui exijam que a medicina seja praticada de forma diferente, certo? Portanto, não se trata de uma rejeição ou negação do poder, por exemplo, ou da importância de uma compreensão biológica das doenças. Mas trata-se mais de como essa politização da formação médica promove um tipo diferente de perspectiva sobre o que é necessário, por exemplo, numa interação médico-paciente.

E há vários exemplos lindos no livro, mas vamos apresentar apenas um para o público, para que eles sejam incentivados a ler o livro ou a explorar isso mais a fundo. Então, por exemplo, nesse hospital chamado El Materno Instituto Maternal Infantil foi a origem do programa Kangaroo Care, ou programa Kangaroo Mother Care [Método Mãe Canguru], o que eu chamei de Inovação Subalterna na Assistência Médica, certo? Assim, na época em que foi criada, no final da década de 70, questionava-se a ideia de que a incubadora e as intervenções médicas dos neonatologistas eram os elementos mais importantes para o cuidado dos bebês de baixo peso ou prematuros. E estes médicos, professores de neonatologia na Colômbia, perguntaram-se se os corpos humanos não poderiam fazer a mesma coisa que os marsupiais. Sabe, como os bebês marsupiais nascessem muito imaturos em estado fetal, então eles entenderam que esses marsupiais estavam na verdade terminando seu crescimento extrauterino. Então, foi aí que eles criaram essa abordagem bem básica para cuidar de recém-nascidos com baixo peso ao nascer, além de, sabe, dar-lhes, oferecer-lhes todos os cuidados necessários. Portanto, não é que o Método Canguru estava substituindo as intervenções médicas, mas sim uma forma de controlar o quanto a medicalização deveria ser implementada. E assim, estes tipos de ideias criativas só podem surgir quando estão ligados a essas histórias de uma compreensão diferente do que são as políticas de assistência. E foi aí que surgiram as epistemologias da assistência.

00:19:36 Ceres: É genial, esse sistema de canguru, é, tipo, tão básico, mas tão revolucionário ao mesmo tempo. Obrigada. Eu também estava dando uma olhada nos cursos que você ministra em Connecticut e entre os cursos reveladores que você ministra na pós-graduação, um seminário chamou especialmente minha atenção, chamado “Decolonial Alternatives: Sense Making, Political Practices and Collective Experiences”. E desse ponto de vista, como você vê o debate sobre a colonialidade e a saúde na perspectiva das mudanças climáticas e do Antropoceno? Como você sabe, são precisamente os países do Sul Global que têm de suportar o peso maior das alterações climáticas. Gostaria de saber se você poderia compartilhar suas ideias sobre como poderíamos avançar em direção a soluções sem perpetuar a dinâmica colonial.

00:20:35 César: Certo. Obrigado por essa pergunta, Ceres. Sim, esse curso e essa perspectiva, sabe, surgiu do meu trabalho mais recente e tem muito a ver com discussões sobre o Antropoceno ou o Capitaloceno, dependendo, sabe, das diferentes discussões e dos efeitos das mudanças climáticas. Então, sim, tenho trabalhado com comunidades indígenas na região amazônica da Colômbia, trabalhando em ambientes pós-acordos de paz – para o público: lembrem-se, em 2016, a Colômbia assinou um acordo de paz entre a guerrilha mais antiga do planeta e o governo, e assim, nos tornamos um tempo pós acordo de paz. E essas regiões rurais, e a Amazônia em especial, tornaram-se uma espécie de epicentro da compreensão do que fazer. E claro, os indígenas são os guardiões da terra e das pessoas com conhecimentos e tradições ancestrais sobre como cuidar, por exemplo, da Amazônia, certo?

E acho que você tem razão, como avançar nas soluções sem perpetuar a dinâmica colonial. E acho que o que eu aprendi e tentei implementar nos cursos é que temos muito a aprender com eles. E isto não é novo, claro, para a antropologia, mas talvez nós estejamos agora num momento político diferente, em que agora entendemos as relações com conhecimentos e práticas ancestrais de uma forma diferente. Então, como nós podemos apoiá-los sem procurar falar em seu nome ou cooptar as suas vozes para fins académicos, certo? Então, eu lembro de alguns anciões indígenas da Amazônia, né? Eles riem de como, sabe, os países europeus lhes enviam especialistas para aprenderem como cuidar da Amazônia, certo? E eles dizem, “Sim”, sabe, “por favor, por favor, fique longe de nós”, sabe, “estamos cuidando da Amazônia há milhares de anos”. “E estamos”, sabe, “os menos culpados em termos das consequências catastróficas do Capitaloceno e da destruição da Amazônia neste momento”.

Mas o que eu tenho aprendido com eles é que talvez um caminho a seguir não seja apenas começar agora a finalmente ouvir o que os anciões têm a dizer sobre os antepassados e o conhecimento ancestral sobre como cuidar da terra, mas isso também requer uma espécie diferente de sensibilidade e imaginação, certo? Porque eu acho que tenho aprendido com eles o papel da arte, por exemplo, ou da poesia ou de diferentes tipos de sensibilidade. Porque eu acho que a questão não é uma questão de conhecimento, né? Não é que nós não entendamos as consequências catastróficas do Antropoceno para as alterações climáticas ou para o planeta, certo? Mas com os anciões indígenas, nós temos que desmantelar a matriz colonial de poder da nossa imaginação e sensibilidades, certo? Então, eu estou mais convencido de que não se trata de um debate intelectual, mas sim de um debate espiritual, por assim dizer. É assim que eles diriam. E eu realmente tenho me mergulhado cada vez mais no papel da arte e de outros tipos de expressões que podem realmente despertar essas sensibilidades.

Então, por exemplo, em uma das últimas iterações deste curso que você mencionou, eu acho que a sessão mais eficaz que nós tivemos com os alunos de pós-graduação foi quando pudemos apresentar um filme indígena, um curta-metragem indígena, que abordou o cerne do que significa o colonialismo de uma perspectiva muito espiritual e visceral, mostrando como seria um mundo indígena. E eu acho que seria nesse tipo de coisas que reside a esperança. Eu gosto muito da ideia de diferentes movimentos sobre a indigenização do Ocidente. E eu acho que é por aí que alguns dos esforços deveriam ser direcionados, na minha perspectiva. E apenas um pequeno comercial, tive a grande honra de ser convidado por Carolyn Smith Morris – que é uma antropóloga médica sênior. Ela muito gentilmente me convidou para coeditar um livro que será lançado este ano. Chama-se Countering Modernity: Communal and Comparative Models from Indigenous Peoples. E eu menciono isso porque acho que aborda exatamente isso ao dar voz direta aos povos indígenas. Portanto, um dos aspectos bonitos desse livro é que quase todos os capítulos são escritos ou coescritos por povos indígenas, criticando a modernidade e mostrando diferentes maneiras pelas quais as epistemologias indígenas continuam contestando e desafiando o poder ocidental a permanecer vital e ativo. Então, eu acho que é aí que a gente está tentando encontrar soluções e ouvir de novo, certo? Como ouvir de forma diferente o que os povos indígenas sempre disseram ao mundo, mas que o Ocidente cooptou ou eliminou nesta luta epistêmica, certo, de quem é o dono do poder do mundo.

00:26:15 Ceres: Obrigada. Isso é incrível. Talvez essa seja exatamente a conexão que eu queria para minha próxima pergunta, que é: eu estava muito interessado em aprender mais sobre a Buen Vivir and Collective Healings Initiative. Então, por favor, conte-nos que tipo de atividades são realizadas nesta iniciativa, quem está envolvido e onde está localizado. Eu quero muito saber o máximo possível, mas eu já me conectei com o que você falou antes.

00:26:46 César: Sim, maravilhoso! Obrigado Ceres. E esta é uma iniciativa completamente nova. Então, todos são bem-vindos e todos que estão ouvindo o podcast são bem-vindos. Estamos tentando criar uma rede de curandeiros indígenas, certo? A questão básica desta nova iniciativa é como curamos as feridas coloniais? Então, eu estou pensando nisso como uma reviravolta na antropologia médica. Certo? Tipo se afasta da relação tradicional entre paciente-médico, profissional-doente e pensa historicamente sobre grupos de pessoas que foram prejudicadas historicamente por legados coloniais e continuam a ser prejudicadas, certo? Então, como nós curamos o racismo? Como curamos a desapropriações de terras? Como podemos curar a exploração sexual dos corpos das mulheres? Certo? Tipo, eu acho que as respostas, mais uma vez, estão neste processo de ritualizar o conhecimento ancestral para o benefício de todos. E, claro, algo semelhante ao que hoje chamamos em antropologia de multiespécies. Mas trata-se daquela conexão profunda entre os humanos e a natureza, certo? Como a possibilidade de recuperar esse lugar do humano como parte da natureza e como parte da história, certo?

Claro, esta iniciativa começou através do trabalho e da honra de estar com os anciões indígenas e aprender com eles e tentar estabelecer uma ponte entre o que eu aprendi com os padrões acadêmicos, por exemplo, em Buen Vivir, que se tornou nesta epistemologia indígena andina muito importante que fez seu rumo para a constituição equatoriana e boliviana e até chegou ao acordo de paz colombiano. E é interessante porque os anciãos indígenas não necessariamente pensam sobre esse conceito, embora, pelo menos na Amazônia, quando nós conversamos com eles, existam outros conceitos parecidos, sabe? Então, foi conversando com eles que eu comecei a pensar sobre o que seria necessário para iniciar este processo e iniciar esta rede de múltiplos processos através dos quais anciões de diferentes tipos estão se esforçando para curar as suas comunidades, para mantê-las unidas, para avançar com ideias para cuidar do planeta, cuidar da nova geração e coisas assim. Sabe, esse é o projeto que começou na Amazônia colombiana e está crescendo de diferentes maneiras. Então, eu pude trabalhar com eles.

E agora estamos trabalhando com algumas comunidades em Hartford também, tentando trabalhar aqui a nível local, onde agora estou ministrando nos EUA com comunidades indígenas locais. Além disso, para pensar sobre como curamos terras, qual é o significado de estar em terras emprestadas? Qual é o significado, por exemplo, da diáspora indígena, migrantes indígenas da América Latina que chegam a outras terras que também são, sabe, os guardiões de outros grupos indígenas da América do Norte, certo? E como fazemos essa ponte e essas alianças para que nós recuperemos esse senso de estarmos localizados em um território que é tão importante, por exemplo, para curar feridas coloniais. Certo? E ser capaz de cuidar da terra e coisas assim.

Então, é uma iniciativa totalmente nova. Está surgindo. Eu comecei a criar com os anciões um índice do Buen Vivir, por exemplo, que ainda está bem em andamento. Estamos tentando apoiar o trabalho deles. Eles estão criando novos calendários ecológicos e epidemiológicos para a Amazônia. Certo? E é nesse processo do que precisa acontecer para recuperar a Amazônia e recuperar o povo da Amazônia que perderam o conhecimento para cuidar da Amazônia, certo? Então, esses anciões estão muito investidos na recuperação do conhecimento para que as novas gerações de povos indígenas possam se tornar os novos zeladores da Amazônia. Certo? Então, acho que é nesse tipo de linha que estamos fazendo esforços nessa iniciativa.

E então, eu estou começando a fazer conexões e tentando trazer todos a bordo. Nós estamos trabalhando numa página da web. Esperamos tê-la pronta em breve. E estamos fazendo, sabe, alguns eventos iniciais. Eu tenho um novo professor residente que é um cineasta indígena mapuche, que também está trabalhando aqui a nível local com comunidades migrantes indígenas em Hartford. E ele faz esses filmes indígenas. Ele os chama de “cine medicina”, sabe, “medicine film”. E então, é uma bela perspectiva que também nos deixar ver como os mundos indígenas são e sobre o que eles são, e como os processos visuais e estéticos são tão diferentes da estética ocidental. E como se nós recuperarmos essa sensibilidade e começarmos a intervir no Ocidente para nos tornarmos indígenas, então há esperança de que todos nós possamos nos curar e seguir em frente.

00:32:01 Ceres: Isso é genial. Muito obrigada. Temos uma das pesquisadoras, que está conectada ao nosso grupo, Maria Paula Pratis. Sabe, ela desenvolveu uma pesquisa de longo prazo com comunidades indígenas, claro que não sobre, mas com elas. E assim, conseguimos alguns filmes ou algumas formas de arte que surgiram desse trabalho colaborativo que ela vem fazendo. E então, tenho certeza de que há uma linha de diálogo aqui. César, indo para minha última pergunta para encerrar nossa conversa de hoje. Eu gostaria de saber se você pode compartilhar alguns de seus projetos, os projetos em que está trabalhando no momento – acredito que esse seja um deles – e também novos projetos para o futuro, novos livros… Bem, você mencionou aquele com Carolyn. E então, de qualquer forma, se você puder encerrar com seus planos futuros.

00:33:09 César: Sim. Obrigado. Quero dizer, é um pouco do que eu estava mencionando. Então, eu continuo trabalhando com os anciãos indígenas dos grupos indígenas Witoto e Korébajü na Amazônia. Então, esperamos poder apoiar seus calendários ecológicos e epidemiológicos – isso é tão fascinante porque eles são muito respeitosos com o conhecimento de outros anciãos. Assim, também, por exemplo, diferente do Ocidente, eles defendem não ter um calendário ecológico universal, nem um epidemiológico universal, mas em ter uma abordagem muito territorial e muito específica para cada comunidade. Então, a ideia é que cada comunidade, ao enfrentar as mudanças climáticas, realmente alterou os ciclos de reprodução da selva amazônica, por exemplo. Então, eles têm que pensar que existem ferramentas no conhecimento ancestral sobre como lidar, certo, com os novos ciclos no clima, certo, e alterações climáticas. A estação chuvosa, a estação seca mudou devido às mudanças climáticas, então vamos continuar trabalhando com eles nesse projeto.

Vamos continuar trabalhando com o cineasta indígena mapuche Francisco Huichaqueo na criação de um filme aqui, que faz interseção com algumas das iniciativas locais que estão acontecendo aqui na área de Hartford com comunidades indígenas migrantes. Então, também estamos trabalhando com ele em um filme que será apresentado lá, e que faz parte dessa iniciativa.

Nós temos outro projeto de arte, que é um projeto baseado em bordados com as vítimas do conflito armado na Colômbia que resultou em uma obra de arte, que tem percorrido diferentes áreas na Colômbia e nos Estados Unidos e no Canadá. E agora vai voltar para a Colômbia. Então, também nós estamos criando um site para isso e pensando em criar uma peça. E nós fizemos uma breve apresentação sobre isso na última conferência antropológica da American Anthropological Association, e fizemos um painel sobre curas coletivas do Sul Global para o qual vocês foram convidados.

E então, por isso nós estamos animados para elaborar uma edição especial sobre curas coletivas do Sul Global que esteja ligada a isto. E recebemos belos artigos apresentando e realmente capturando essa ideia. E muito do trabalho é fascinante e atravessa diferentes perspectivas, principalmente da América Latina com diferentes comunidades indígenas, e sobre o que esses tipos diferentes estratégias de cura, que lidam com corpos coletivos que, por exemplo, “Saúde Coletiva”, a saúde coletiva no Brasil, nos ensinou muito sobre como pensar, não sobre corpos individuais, mas sobre o que constitui agrupamentos de pessoas e o que esses agrupamentos de pessoas precisam para se curar. Então, eu acho que vamos nos divertir muito montando esta edição especial. E isso nos ajudará tremendamente.

E talvez eu termine com outro lindo projeto em colaboração com um dos meus alunos de pós-graduação. Também eu tenho a honra de ter uma aluna, que também é líder indígena Mapuche, Catalina Alvarado-Cañuta, que está tentando fazer um projeto de doutorado no qual relacionamos o que significa para o povo Mapuche curar feridas e traumas coloniais e o papel da tecelagem nesse processo. Ela vai incluir uma peça de tecido pessoal em seu projeto. Ela está aprendendo com as mulheres, que são tecelãs incríveis na cultura Mapuche, a contar a história e pensar, se for verdade, que contar histórias de tecelagem e arte, que é outra expressão através da qual podemos curar esta ferida colonial. Então, eu acho, sabe, que minha nova fase em minha trajetória se concentrará em tentar recuperar e colocar em conversa todas essas dinâmicas interessantes que as pessoas estão fazendo para descobrir como podemos continuar, sabe, a existir neste planeta ferido e sua administração indígena. Então, esse é o resumo dos meus novos esforços daqui para frente. E mais uma vez, todos estão convidados a fazer parte disso. E muito obrigado Ceres e a todos.

00:37:40 Ceres: Obrigada. Obrigado por reservar um tempo para falar conosco. Você gostaria de dizer mais alguma coisa? Há algo que não abordamos – eu tenho certeza que há muito – mas de qualquer forma, você gostaria de acrescentar algo apenas, sabe, por finalizar?

00:37:57 César: Não Ceres. Obrigado novamente. Acho que vou apenas reiterar que estamos em um momento muito interessante, onde cada vez mais é necessário que sejamos muito humildes em termos do conhecimento que pensamos ter e do papel da academia em todos esses esforços, e como para redefinir qual é o nosso papel nisso, certo? Pois, nós somos ajudantes, somos colaboradores, mas os guardiões são outras pessoas que sabem realmente cuidar da terra e da Terra. Certo? Então, eu acho um belo desafio, né, já que nós somos todos brilhantes e doutorados e professores e tal, certo? Por isso, isso convida-nos a ser verdadeiramente humildes e a encontrar alegria em apoiar aqueles que sabem cuidar da terra. Então, acho que também nós estamos em um momento conceitual e momento teórico muito fascinante, certo, para pensar sobre essas coisas. Certo? Então, qual é o significado do conhecimento ocidental, como sabemos, não conter as percepções mais valiosas? Então, o que nós fazemos como pessoas treinadas no Ocidente? Então, esse é um belo convite com que gostaria de finalizar para que todos pensemos e encontremos soluções.

00:39:09 Ceres: Muito obrigado por esta linda nota, encerramos nosso podcast por hoje. Obrigada novamente. Obrigada, Juan. Obrigada, Ivana.

00:39:22 Laura: Este episódio foi gravado virtualmente entre os EUA e o Brasil, Ceres Víctora conduziu a entrevista. Ivana Teixeira escreveu o roteiro. Laura Montesi emprestou sua voz para os jingles. Gabriela Martinez gerenciou a produção geral e Juan Mayorga cuidou da edição de áudio e da pós-produção. Este podcast é uma colaboração internacional entre a University College London, no Reino Unido, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, Brasil, e o Centro de Investigaciones y Estudio Superiores en Antropología Social, em Oaxaca, México.

Pontos de Aprendizagem

  • O que César Abadia-Barrero considera ser “epistemologias do cuidado”? Quais são suas características?
  • O que significa dizer que um determinado conhecimento ou prática de saúde é do Sul e subalterno?
  • Por que é importante revelar e fortalecer epistemologias culturalmente localizadas no Sul Global?