Episódio 7: Relações multi-espécies e racismo, plantation da cana-de-açúcar, participação social e saúde: uma conversa com Cristiana Bastos

Neste episódio, Cristiana Bastos fala sobre sua pesquisa realizada em diferentes países, como Brasil, Índia, Angola e outros. Ao revelar processos de desigualdade social nesses países, ela mostra como o pensamento social presente na saúde coletiva no Brasil, por exemplo, passa por toda uma elaboração sobre o papel da medicina tropical na história da constituição da nação, na qual a lógica da medicina tropical de germes estava ligada a sistemas coloniais, como a supremacia de um grupo da população sobre o outro, na conquista do interior, na submissão de forças indígenas ou na expansão de uma lógica urbana branca. Esses vínculos com a subjugação de certas alteridades foram investigados por Bastos em seu projeto “A Cor do Trabalho”, destacando como as plantações de cana-de-açúcar perpetuaram a escravidão no período pós-abolição, através da migração de trabalhadores madeirenses para trabalhar nesses locais, levando consigo uma servidão que diferia da escravidão, mas que também estava relacionada à cor, colocando o imigrante sob um contrato de trabalho assinado, a perpetuar essa lógica imperialista.
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Cristiana Bastos é professora e investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. É antropóloga com doutorado pela City University of New York, com um trabalho que intersecta antropologia, história e estudos sociais da Ciência e da tecnologia.  Aborda temas como medicina e império, epidemias e os processos de racialização em sociedades de plantation. Com vasta pesquisa de campo em Portugal, Brasil, Estados Unidos, Índia, Moçambique, entre outros países. Recentemente, Cristiana coordenou o projeto “The Color of Labor: the racialized lives of migrantes”, que foi financiado pelo Conselho Europeu de Pesquisa.

Transcrição

Episódio 7: “Relações multi-espécies e racismo, plantation da cana-de-açúcar, participação social e saúde”

 00:00:01 Ivana Teixeira: Desigualdades corporificadas do Antropoceno. Construindo competências em antropologia médica. Uma série de podcasts que analisa os impactos na saúde humana e não-humana dessa época geológico-política de profundas transformações.

00:00:23 Jean Segata: Bem vindos e bem vindas a mais uma seção do podcast Desigualdades Corporificadas do Antropoceno, um espaço colaborativo entre universidades da Inglaterra, Brasil e México, onde exploramos a saúde nesse novo período político geológico, a partir de áreas como: a experiência indígena e a colonialidade do Antropoceno; gênero, reprodução e justiça social; etnografias multiespécies, saúde humano-animal; a Covid-19 e; a compreensão pública do Antropoceno. Além de toxicidade e exposição química.

Eu sou Jean Segata, professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Brasil, onde ensino e pesquiso saúde multiespécies, tecnologias e alimentação. Nossa convidada de hoje é Cristiana Bastos, professora e investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, onde nasceu. É antropóloga com doutorado pela City University of New York, com um trabalho que intersecta antropologia, história e estudos sociais da Ciência e da tecnologia. Cristiana aborda temas como medicina e império, epidemias e os processos de racialização em sociedades de plantation. Com vasta pesquisa de campo em Portugal, Brasil, Estados Unidos, Índia, Moçambique, entre outros países. Recentemente, Cristiana coordenou o projeto “The Colour of Labour: the racialised lives of migrantes”, que foi financiado pelo Conselho Europeu de Pesquisa e, mais recentemente, ela acaba de receber o Prêmio Científico da Universidade de Lisboa. Bem vinda, Cristiana! Obrigada por dedicar o seu tempo para falar conosco e com os ouvintes do nosso podcast.

00:02:29 Cristiana Bastos: Obrigada por me terem aqui Jean, Ivana, Juan. É um prazer estar neste momento em simultâneo e gravar um podcast que é o meu primeiro. Eu ouço muito podcasts daqui e dali, mas nunca tinha feito nenhum, então perdoem se alguma coisa vai errado. Bom, já fiz programas de rádio, mas era, chamavam-se programas de rádio, agora é outra coisa. Muito obrigada pela generosa introdução.

Eu tenho o máximo interesse em dialogar com o projeto das Desigualdades Corporificadas do Antropoceno. Aliás, já tivemos um evento em Lisboa que correu muitíssimo bem e foi um momento de lançamento para nós, mas de consolidação de linhas que já vinham a ser objeto de diálogo. É um momento muito importante, nós partirmos do que temos de antropologia e de estudos de ciência e de estudos de saúde e de estudos de Antropoceno globais para pensarmos conjuntamente e relativizarmos uma posição um pouco antropocêntrica que tem sido a da antropologia e olharmos para variáveis que são, são mais que variáveis, são intervenientes nesta complexidade. Portanto, muito obrigada, é um prazer estar aqui.

00:03:48 Ivana: Muito obrigada, professora Cristiana, por ter aceitado o nosso convite. É realmente um prazer e uma honra para nós todos termos a sua parceria e para nós começarmos aos pontos com a sua participação. Você poderia nos contar um pouquinho mais sobre você? Onde nasceu? Onde estudou os seus mentores? Como se interessou pela antropologia em geral e também pelo estudo dessas relações entre historiografia, antropologia, saúde e imigração?

00:04:24 Cristiana: Claro, com muito prazer, não deixem alongar me muito mais, porque a minha vida também já vai um pouco longa. Eu entrei na Antropologia cedo, passei por outras ciências sociais porque a disciplina não estava disponível quando eu entrei na faculdade em Portugal. Expus-me a outras áreas das ciências sociais e depois, assim que abriu a licenciatura em Antropologia, eu entrei e não deixei mais. Tem sido sempre o meu, a minha disciplina guia. Dito isso, eu também tive supervisão e tive mentores do lado da história que me ensinaram a olhar para as coisas globalmente. Uma história social, sem dúvida. O mais destacado é o Vitorino Magalhães Godinho, que é um grande historiador, era um grande historiador, português que me supervisionou o mestrado e sempre ajudou a abrir, a abrir a perspectiva, não fechar, a abrir, a pensar com mais variáveis, pensar com mais complexidade e não ter medo de envolver longa distância e, a longo termo, a muita complexidade.

Não ter medo, portanto, de certa maneira, o que era um movimento da antropologia, da etnografia para ficar centrado num microuniverso em detalhe, conviveu sempre com um impulso para ir procurar variáveis mais longe. Portanto, logo no meu primeiro trabalho de fôlego, que é o sobre a serra algarvia, o nordeste algarvio, eu, ao mesmo tempo que fiz trabalho de campo, residente num, num pequeno lugar no concelho de Alcoutim, que é no sul de Portugal, eu também olhei para tudo o que consegui encontrar de fontes paroquiais, de livros de registos, de dados demográficos, etc., para ter uma perspectiva de longo termo e longo alcance. Portanto, a história como método e como forma de pensar e como dimensão, vamos lá, esteve sempre presente no meu trabalho de antropologia. Nem consigo pensar de outra forma.

O trabalho seguinte foi já nos Estados Unidos. Eu segui para os Estados Unidos para fazer o doutorado, porque queria expor-me também a pensamentos diferentes que não encontrava tão perto, nem em Portugal nem, nem na Europa continental. E fiz, eu fui aceita por algumas, mas o que me interessou mais foi a que unia City University of New York, que tinha um ambiente vibrante, intelectual e político muito interessante. Então tínhamos professores como Eric Wolf, June Nash, Shirley Lindemann, Vincent Crapanzano, etc. E colegas de, muito interessantes. Grande qualidade. Tenho muito, muito boa memória desse tempo do meu doutorado, que foi no final dos anos 80 e princípios de 90, e nesse tempo grassava a epidemia de AIDS na cidade de Nova Iorque de uma forma impossível de não, não atingir as vidas de toda a gente. Quem tivesse a doença ou quem não tivesse era, era uma coisa fortíssima. E eu tinha já interesse nos temas de antropologia da saúde, e pronto, e acabei por fazer a epidemia também. Mas levei a minha aproximação a epidemia menos para uma coisa de, digamos, contagem epidemiológica ou análise comportamental de um grupo específico, etc. Que era o que muita gente fazia. E tentar pensar de uma forma global mesmo. Como é que nós pensamos a doença infecciosa? Porque é que se pensa desta maneira? Porque é que há tanta ênfase no armamentário e no combate? Porque é que se pensa no sistema imunológico como um exército de defesa? E tem os soldadinhos, etc. Hoje já não se pensa tanto assim, mas nos anos 80 e 90 era, era total esse vocabulário. E por várias razões que depois posso explicar como com mais vagar, mas senão nunca mais chegamos onde queremos.

Eu fui fazer o trabalho de pesquisa empírico no Brasil, no Rio de Janeiro. Eu fiz um pouco o que na altura não se chamava ainda trabalho multi-situado porque fiz também trabalho de campo em Nova Iorque, não é? E fiz também nas organizações internacionais a que hoje se chama de saúde global na OMS, a Organização Mundial de Saúde, no Programa Global de AIDS, que era, que era parte da OMS. Frequentei as conferências internacionais. Até para me financiar eu tornei-me, temporariamente, jornalista científica para, para um semanário português, para poder ter acesso aos congressos que eram muito caros. Eu era apenas estudante e, além de ter acesso, tinha acesso à sala de imprensa, que isso é um sonho para nós que estamos habituados a ir atrás das fontes e esperar semanas que nos entreviste, ali. Todos querem ser entrevistados, todos dão press release. A informação corre muito, mais, muito mais facilmente. Portanto, eu fiz esse trabalho com uma âncora grande no Rio de Janeiro, olhando também para São Paulo, Brasil e etc. Como outra âncora em Nova York e com uma perspectiva nas sociedades internacionais de combate à AIDS. Nós aqui em Portugal chamamos SIDA, mas, mas nesse tempo era, era tudo a AIDS para mim é isso, é AIDS.

Então, isso foi a minha, eu que já tinha algum interesse em sistemas de cura, sistemas médicos, formas de pensamento médico, talvez uma perspectiva; nem sabia muito bem enunciar próximo da história da ciência, mas na verdade mais, até mais próxima dos estudos sociais de ciência que estavam a configurar, entretanto. Acabei por materializar isso, vamos lá, no estudo de uma epidemia, não era só uma epidemia, era uma pandemia, era um altamente visível, vamos lá. Portanto, não foi fácil terminar a minha tese de doutorado, porque estava sempre tudo a mudar e estava sempre o assunto a entrar pela minha vida adentro. Por mesmo não havendo ainda muita internet, nem havia internet mesmo, mas havia meios de comunicação, etc. Isso não, não era como dizer adeus às pessoas que nos receberam numa aldeia durante um ano ou dois e depois vamos mudar de ambiente para outro lado.

O assunto continuava, bom, o que é que se dá durante o meu trabalho de campo, comigo, com a minha interação com (entre aspas) “o campo” que é, que era o todo o conjunto de atores sociais que trabalhavam a AIDS? Portanto, não era só os pacientes, era também os pacientes e grupos de ação, mas era os clínicos, os e as médicas, cientistas, políticos, políticos de envolvidos em fazer políticas públicas, cientistas sociais também ativistas, etc., etc. E dentro de uma, acompanhei, com autorização, portanto, casos clínicos em toda a, todo o drama que eram. Estamos a falar de um tempo em que não havia ainda os antirretrovirais eficazes que há hoje. E eram situações sempre muito, muito emocionantes, duras para todos, todos os envolvidos. E uma parte de mim interessou se por duas coisas que tinham uma dinâmica muito especial no Brasil, muito diferente dos Estados Unidos e diferente de outros lugares que eu conhecia.

Um, era portanto, uma assistência às doenças infecciosas, que tinha uma tradição vinda da medicina tropical, vinda de uma medicina de assistência a camadas menos favorecidas, a camadas afetadas por doenças endêmicas ou epidêmicas que não eram visíveis na Europa. Raramente, a não ser que estivéssemos a falar de, de medicina de assistência na continuação da medicina colonial, e essa parte articulava-se com também – o que é outra componente, que é um pensamento social sobre, sobre o Brasil que passa por, também, passava, pelo menos com os colegas com quem eu interagi – passava por ter um conhecimento ou desenvolver pesquisas sobre o papel da medicina tropical na história da nação, vamos lá. E estou a falar mais especificamente dos colegas da Fiocruz[1].

Eu fiz, digamos, trabalho de campo em vários lugares no, no Fundão da UFRJ[2], no Antônio Pedro[3] Niterói, na ABIA[4], no GAPA[5],  etc., etc. Mas foi na Fiocruz que tive, digamos, um clique para pesquisa seguinte, não só a acompanhar os então jovens, eu era jovem também, que faziam um curso de especialização em doenças tropicais e que me tinham muita piedade, porque eu não conseguia ver nada no microscópio. Aquele olho treinado para ver os parasitas e pequenos seres, eu não conseguia nada e fazia parte da minha pesquisa vê-los ou conseguir fazer isso e tentar aprender e, (eu) interagi muito com eles foi, foi muito interessante. E também com os colegas que faziam o que era, e estava muito no início, a casa de Oswaldo Cruz, ou seja, um grupo de pesquisadores só dedicados à história da medicina. Aprendi muito com eles e isso ficou-me, transformou-me para o passo seguinte, para meu ciclo seguinte de pesquisa. Então eu, digamos, fechei o ciclo AIDS, eu escolhi não continuar com a AIDS, por razões pessoais, eu não, não quero ficar com a minha identidade – é uma coisa que eu quero mais é que acabe hoje, ou amanhã, ou na próxima semana. Então, louvo muito quem continua a trabalhar sobre Aids, mas eu quis mudar de campo cognitivo, pelo menos campo de pesquisa.

E aí é que essa ideia de a medicina tropical ser a génese ou ser a mãe ou avó da medicina, das doenças infecciosas me fez ir procurar aos sistemas de, digamos coloniais propriamente ditos, aos sistemas de, de Império, ver o desenvolvimento da gênese da medicina tropical, vamos lá. A ideia era ver como é que o exercício do poder militar colonial imperial recorta e da linguagem ao exercício da medicina dos germes tropical. E há umas passagens muito grandes, eu não, não posso desenvolver muito mais isso, tratei alguns artigos, mas isso levou-me a ficar me próxima de toda uma literatura que é medicina, império e isso fez me, aí sim, aí é que eu estou com os tais, o tal mundo de influência portuguesa, porque entrei nos Arquivos Coloniais ou o Arquivo Histórico Ultramarino, sobretudo a parte de, da saúde, para tentar examinar o colonialismo português do século XIX e princípios de 20, sob esse ângulo das relações de poder e saúde.

Eu inicialmente tinha a ambição de fazer as colónias todas, sei lá, Goa, Macau, Moçambique, Angola, Cabo Verde, etc., etc. E depois percebi que isso era ambicioso demais e continuei em Goa e fiquei muito tempo com o trabalho de Goa, mas, mas mais do que eu tinha inicialmente pensado e também pensando no background no Brasil, porque o Brasil, nesse momento da implantação da medicina tropical, não é uma colónia de ninguém, mas a construção da nação é um processo de certa maneira colonial, de uma de um grupo da população sobre outro. A conquista do interior, a sujeição das populações indígenas, a expansão de uma lógica urbana branca, vamos lá, é um processo semelhante ao processo colonial. Isso demorou algum tempo para se configurar para mim e pronto. Portanto, isso foi o segundo ciclo. E não sei, já respondi. Vamos. Vamos até ao projeto mais recente.

00:17:46 Jean: Obrigado, Cristiana. Continuando então nessa, nesse seu percurso, nessa sua trajetória, nós gostaríamos de ouvir um pouco mais sobre um dos seus últimos projetos de “Colour of Labour: the racialised lives of migrantes”. Quais foram os principais eixos desta pesquisa e como, de alguma forma, podemos relacionar esses temas com as desigualdades sociais em saúde na era do Antropoceno?

00:18:20 Cristiana: Obrigada, Jean. Saiu por continuidade e por oposição ao que tinha sido o meu ciclo anterior. Portanto, por um lado, a continuidade de continuar a explorar esses nexos de império, subjugação, etc., que tinha visto no estudo do século XIX, por oposição, precisamente para sair dessa esfera mais lusófona e do colonialismo português e olhar para outros aspetos. Há um, há um momento em que também é transformador, que é um, há um episódio que tem a ver com o sul de Angola, que é uma espécie de colonização estranha feita no final do século XIX, que não faz muito sentido com o resto do propósito colonial. E quando eu examinei mais de perto esse fenômeno, eu passei a chamar-lhe uma engenharia social que se tratou de desviar fluxos migratórios que iam para fora do país, desviar esses fluxos para o que eram lugares que o governo português queria ocupar em África. E quais eram esses lugares para onde as pessoas iam e que não estão tão reconhecidos na história habitual, nem de Portugal nem na história internacional? Era pro Hawaii.

O Barco (ininteligível 19’45”) de madeirenses que foram para o sul de Angola, possivelmente, desviou, literalmente, pessoas que tinham planeado ir para o para o Havaí. E já explico o porquê que era o Havaí, e era também a Guiana, a Guiana Britânica ou a Demerara, mas conhecida por Demerara, embora Demerara seja só. E o que é que as pessoas iam fazer para estes lugares? As pessoas iam como trabalhadores vinculados em servidão, parecido com os indentured labourers da Índia para as plantações de açúcar, do Trinidad, da Guiana também, e da Maurícia. E eram a forma de a economia de plantação continuar a ter uma fonte de trabalho no pós abolição da escravatura.

Em alguns lugares isso pode se ver cronologicamente como é que se acaba um ciclo de “importação” (entre aspas) de escravizados africanos e se substitui por um ciclo de, não se pode dizer escravizados, mas de indentured, vinculados contratados da Índia. É o caso de Guiana, Suriname, Maurícias. Isso vê-se muito bem. Ou no caso de Fiji há também há um grande número de contratados indianos. Mas há um momento em que o Império Inglês usa. Há trabalhadores madeirenses que estão na rota entre a Inglaterra e, e Demerara. A ilha da Madeira está no, está no caminho. Era uma um alvo fácil e as pessoas na Madeira no século XIX, nos meados do século XIX, viviam em condições terríveis as da base da sociedade e uma sociedade piramidal. Ela própria é uma espécie de plantation avant la lettre. É uma espécie de sociedade feudal prolongada no tempo em pirâmide, com uma um número muito restrito de pessoas no topo e um número muito largo de pessoas numa base muito precária, muito vulnerável. Portanto, essas pessoas eram facilmente recrutadas, quando não quase raptadas, para irem para as para as canas de açúcar, para os para os campos de açúcar, onde já não eram recrutados os escravizados africanos, portanto, iam junto com africanos livres e com mais tarde indianos contratados também. Então, essa era uma parte da história ligada a fluxos de migração portugueses que eu totalmente desconhecia.

Eu na altura perguntei a colegas historiadores: “mas o que é isto?” “Que isto é? Não” – havia um vago conhecimento de que havia uma comunidade portuguesa no Havaí. Mas também não sabiam muito mais. Então, esse foi o primeiro impulso. Demorou muito tempo a pensar. O primeiro impulso foi tentar ver que fluxos eram esses. Aí sim, era um nexo, digamos, português. E isso levou-me a entrar na literatura de plantation em pleno e ver os processos de racialização que são uma dinâmica da plantation em si mesmo, para além do que foi a racialização central, que é criar a categoria de negro a partir da diversidade que eram os africanos que foram, entretanto, escravizados. Portanto, o argumento é que a plantation é uma máquina de produzir racialização. Ela produz essa categoria negro com o grande tráfico de escravizados no Atlântico. Mas a máquina continua a produzir mesmo para além da abolição da escravatura ou mesmo quando nela não existiu, como no Havaí. Quer dizer, existiu a escravidão doméstica, mas isso não é a mesma coisa que a escravização em massa a do/para as plantações através do Atlântico.

00:23:39 Ivana: Obrigada, Cristiana. O próximo ponto que eu gostaria de tocar está muito relacionado a isso que tu falaste no final sobre essa relação produtiva, se a gente pode dizer assim da plantation, É claro que produtivo é uma palavra mais positiva, mas no seu atual projeto, que é, é vasto e extremamente interessante. É você traz essa noção ou essa perspectiva de que as plantas transformam e criarão sociedades humanas contribuindo com diferentes formas de hierarquização e racialização? Eu gostaria que você nos falasse um pouco mais sobre a sua noção de plantas que produzem pessoas e a relação dessa noção com o colonialismo, com o capitalismo, a partir dos seus estudos.

00:24:33 Cristiana: Ok. Obrigada pela pergunta. Então é assim, essa ideia de plantas produzem pessoas não foi um ponto de partida, foi um efeito da análise ao longo do projeto. E eu penso que ela é um efeito também de nós ampliarmos o quadro de análise de uma a, de um quadro antropocêntrico muito centrado na agêncialidade humana é trazer a própria dinâmica, “agência” (entre aspas), podemos dizer, dos outros elementos não humanos. Então foi uma experiência cognitiva que eu fiz a partir do que analisei nas sociedades de plantação. E que tal se nós olharmos para como é a cana do açúcar, o agente transformador das sociedades não quer dizer que as plantas por si sozinhas, transformem as sociedades. Óbvio que não.

Mas se nós olharmos para a rota da cana do açúcar, o como ela se tornou um objeto de desejo, de desejo de provar, por um lado, e de desejo de criar lucro fácil e multiplicar-se em ganância e em acumulação de capital por outro, como muito bem mostram o Sidney Mintz[6],  como mostra o Eric Wolf, como mostra ou o Eric Williams, etc. Que mostram como, na verdade, o capitalismo e a revolução industrial começam ali, no açúcar. Então, nós podemos fazer um todo um argumento a mostrar como foram as canas na sua viagem pelo mundo, que foram criando dinâmicas sociais e económicas. Claro, a interação com humanos, com desejos, com volição e com propósitos.

E, a partir de dado momento, essa inter-relação que é produção, terra, planta e capital gera entre aspas uma dinâmica de trazer força de trabalho que é das coisas mais brutais à face da terra, que foi a escravização, que foi o escravismo através do Atlântico. E que nesse processo cria diferenças sociais que ficam codificadas como naturais. Cria-se raça. Se não existissem designações para diferenças raciais antes, existiam! Não é que não existissem até formas, como já disse há pouco, formas de servidão doméstica, de escravatura, escravatura de guerra, etc., etc. Tudo isso existia.

Mas o processo do plantation, que é ter sua epítome na plantação de açúcar, que é capital poderoso rápido, exigindo um tipo de força de trabalho imediato, é preciso processar logo a cana para transformar aquilo, depois pode dar muito dinheiro, mais dinheiro do que no ciclo anterior do Império. Eram as especiarias que eram colhidas não eram, não eram criadas dessa forma, eram, eram traficadas no momento inicial, de uma forma mais, digamos, humanizada.

Nós, com a plantação de açúcar, temos uma transformação social que fica com marcas até hoje, que é a criação de uma categoria racial, de trabalho escravo. E associada a uma cor negra ou uma raça negra. Isso é algo que, por mais que possa ter origens anteriores, a plantation passou a um patamar de, digamos, ontológico, a partir do plantation, que tem consequências até hoje. O racialismo hierarquizante por cor que foi codificado nas ciências racialistas do século XVIII e por aí fora, deixou marcas até hoje. Até hoje temos muita gente no mundo a pensar em hierarquias associadas a colorações. E não chega combater o racismo através da demonstração que geneticamente não tem qualquer validade essa categorização de raças humanas, nós sabemos isso.

A ciência sabe isso há que tempos, mas isso não chega como mola para negar o racismo. Então eu penso que olhar para a forma como esta dinâmica da produção do açúcar criou categorias de pessoas e, portanto, no limite, as plantas produziram categorias de pessoas como trabalho, como, como escravizados e depois como raça, ajuda a compreender a complexidade, portanto. E como? Como uma colagem de hierarquia e de funções, colorações que sobra e que é talvez a componente uma das componentes mais pesadas do racismo que chega até hoje.

00:29:43 Ivana: Obrigada Cristiana.

00:29:44 Jean: Cristiana, no projeto Desigualdades Corporificadas do Antropoceno, nós adotamos uma perspectiva de antropologia médica crítica. Essa é uma perspectiva que nós percebemos também no seu trabalho. Mas muito mais que isso, você traz um forte componente de uma relação entre etnografia e história para analisar os processos que moldaram uma certa biopolítica colonialista das práticas de saúde e das suas conexões e desconexões entre as lógicas globais e locais. Nós gostaríamos de ouvir um pouco mais de você sobre como esse passado colonial nas práticas de saúde que você percebeu nos seus trabalhos, né? Tem moldado algumas das experiências sobre como hoje trabalhamos com epidemias e com outros processos de saúde e doença. Se você puder nos trazer exemplos das suas pesquisas no Brasil, mas também de outros países, vai ser ótimo para os nossos ouvintes do projeto Desigualdades Corporificadas do Antropoceno.

00:30:57 Cristiana: Obrigada, Jean. Bom, eu acho que aí pegou-me porque eu não estou a trabalhar direto agora sobre epidemias, embora por conta do convite, tive que refletir um pouco e pensar. Portanto, eu posso não estar totalmente atualizada relativamente ao que se faz na saúde global. Mesmo assim, vamos tentar porque vou, vou dando alguma atenção. E eu creio que o que temos de cenário hoje, nos anos 2020, não é o que tínhamos de cenário nos anos 1980, quando eclodiu a epidemia de AIDS. E em parte, o que temos hoje de diferente deve se também a muito do que foi feito a propósito da epidemia de AIDS.

A noção de saúde global, mais do que saúde internacional, foi um efeito desse momento. Não vou dizer que foram os agentes da AIDS que criaram a ideia de saúde global, mas essa ideia de haver vozes múltiplas, parceiros múltiplos, de ouvir as ONGs.

Repare agora um pequeno parênteses eu não falei nisso, mas estudei também a sífilis no início do século XX, em Lisboa e na Europa, etc., e orientei algumas tese, enfim, o que era o poder, o empoderamento pessoal, o empowerment pessoal, a capacitação das portadoras de sífilis no início do século XX ou o que era o das pessoas com AIDS no final do século XX é algo muito diferente. Nós tínhamos, mas não digo que fosse assim para todo mundo, criou se uma, uma necessidade de tomar em consideração a voz dos afetados.

A agenda pessoal e coletiva das populações em risco é um esforço, pelo menos para haver, chamemos de alto Norte-Sul, chamemos multi-nuclear, etc., etc. Isso mudou e eu creio que o que temos no século XX não é um decalque do cenário imperial que tínhamos no final do século XX e que era, quer dizer, nós -repare eu quando, quando eu comecei a estudar e a olhar para os dados internacionais ainda antes da internet, vieram com, com folhinhas de papel e gráficos, etc. O mapa da África parecia que recortava, que era de países independentes, com décadas de independência, mas a incidência de Aids parecia que recortava o que tinha sido o mapa colonial, porque os tipos de ajuda vinham diretamente para o Congo, da Bélgica, para o para Angola de Portugal e por aí afora. E isso era o cenário no final do século XX.

Eu creio que hoje estamos com outro mundo. Eu creio que nós tivemos pessoas envolvidas com a AIDS, como o Paul Farmer e todos os seus colegas do da saúde global e muitos mais a partir de Genebra, de Cambridge, Massachusetts, a partir da África do Sul, etc., a partir do Brasil, de vários lugares no Brasil, a transformar o cenário da saúde global. Portanto, eu creio que estamos com uma consciência diferente e com uma capacitação diferente também. Dito isto, não quer dizer que estejamos no lado oposto do que foi o mundo do Império.

Muitas das desigualdades são ainda um efeito prolongado das desigualdades criadas nesse regime que eu até, eu até acho mais importante falar no regime do plantation do que no nos impérios, porque os impérios foram, foram muitas coisas diferentes e nalguns lugares não necessariamente a criação de desigualdades, dessas outras há confronto de diferenças, diferenças de culturas, diferenças de acesso, etc. Portanto, eu teria mais cautela em ver uma coisa uma continuidade unívoca do regime imperial das desigualdades coloniais para os dias de hoje. Se bem que muito do que temos é efeito desse momento de desigualdade.

00:35:17 Ivana: Muito obrigada, Cristiana. Você nos falou a respeito de seus trabalhos, projetos, de reflexões e desdobramentos desses trabalhos. Obrigada por nos falar mais dessas questões, desses pontos de vista e desses meandros que aparecem nas suas pesquisas. Elas são extremamente importantes para a antropologia em geral, mas principalmente para essa antropologia crítica, a antropologia médica crítica que nós desenvolvemos, como o Jean comentou antes, muito próxima da sua perspectiva, que é histórica, que é também local e é também etnográfica. Você gostaria de falar a respeito de novos projetos, de desdobramentos desses projetos ou de investimentos futuros.

00:36:10 Cristiana: Obrigada. Eu até gostava de acrescentar alguma coisa que não desenvolvi na pergunta anterior, que é o este abrir aqueles que não eram habitualmente as vozes de comando ou de decisão política sobre saúde e o envolver a populações mais frágeis, envolver minorias, envolver as pessoas afetadas, criou uma dinâmica. Não quer dizer que tenha resolvido os problemas do mundo, mas criou pelo menos uma consciência global que não pode mais deixar de ser tomada em consideração. Mas não ficou por aí essa dinâmica. Eu acho que temos hoje, nos anos 2020, uma abertura do horizonte analítico e de ação que é multiespécies, que é para além do recorte antropocêntrico que tínhamos até hoje na análise da antropologia. Portanto, o que é que nós aprendemos desta luta complexa? Olha, não podemos ficar só pelos humanos. Os humanos fazem muitas coisas, muito mais uns aos outros, não é, não é necessariamente o humano oprimido que vai salvar todos os mais porque pode salvar ou não. Pode ser opressor também. E, infelizmente, a espécie humana não contém garantidamente sempre todas as raízes do, do remédio para os males que causa.

Então, temos que hoje em dia não é, já não é extraordinária, é uma coisa que os antropólogos diziam há umas décadas, mas parecia que estavam no seu mundinho apenas quer -ouvir o que dizem as populações indígenas, ouvir os rios, ouvir as espécies, ouvir os animais, ouvir o leopardo, ouvir a cobra, ouvir a árvore, ouvir a paineira ouvir a montanha e escutar o que esses seres estão a dizer também sobre o estado da saúde planetária. Hoje a saúde planetária não é só a saúde humana e quem não toma em consideração a isso? Quem está criando? Criar um remédio para uma coisa que intoxica um rio que depois vai criar mais patologias, está a fazer errado. Portanto, eu creio que hoje há mais consciência disso. Vamos nós, em conjunto humanidade com as outras espécies, conseguir conter esta catástrofe que está em marcha com as alterações climáticas? Isso eu não sei responder, nem ninguém sabe. Não está tudo perdido. Temos cenários de apocalipse global lento ou rápido, e temos cenários de redenção, digamos, mitigação do que temos pela frente. E hoje esses cenários têm de passar por ouvir estas espécies.

Então, voltando à sua pergunta que é o que é que são projetos futuros? Eu estou no finalzinho já do projeto “Colour of Labour”, que era um projeto que começou antropocêntrico, começou com uma grelha humana a olhar para como a infraestrutura de economia da plantação produz uma superestrutura social, cultural e cognitiva que são as racializações, e passou a entrar com espécies também, nomeadamente com as plantas. Outros trabalham com animais, eu trabalho mais com as plantas. E isso criou uma essa tal dinâmica do Plant-People plantas-pessoas que eu explorei n’alguns artigos que já só foram publicados agora em 24. Um ainda está para publicar.

Eu comecei a pensar nessa linha num encontro que foi o último antes da pandemia. Foi em dezembro de 2019, em Chennai. Chamava se República das Plantas e isso transformou me um bocado. Foi o último congresso assim, ao vivo, no tempo da inocência, digamos, da inocência, pré-covid. E a partir daí eu comecei a desenvolver essa ideia do como o açúcar cria, cria dinâmicas sociais e então explorei mais, mas com vários lados, portanto, há um artigo que saiu no Journal Ethnobiology[7], que é um número especial que eu coeditei com outros colegas, com o Andrew Flachs e Deborah Heath e a Sita Venkateswar. O meu artigo mostra também relações que são de resgate da relação pessoa-planta, que não são, digamos, de maldição e mau karma e sofrimento e opressão e estrangulamento, mas são de afeto a memória, identificação. Mesmo que venham de algum lugar de dor, podem ser um lugar de identificação pessoal, crescimento, felicidade, desejo, etc., etc.

Portanto, eu neste momento estou ainda não sei muito bem para onde é que isso me vai levar, mas estou a pensar nisso. Recentemente estive num simpósio em Veneza, organizado pela colega Tamar Blickstein, que era “Ecologias de perda e sobrevidas da plantação”[8] que nos vai dar agora algum momento, momentos de pensamento crítico para os próximos meses que vamos editar um número especial. E pronto, tenho mais outros, mas senão nunca mais me calo é melhor despedir me agora. Foi um prazer estar com vocês e desejo ótimo trabalho no podcast e no projeto.

00:41:21 Ivana: Muito obrigada, Cristiana! Um prazer, como eu disse, falar contigo, te ouvir e enfim, estamos muito agradecidos. Muito obrigada.

00:41:32 Jean: Muito obrigado mesmo. Obrigado por ter falado com a gente nesse sábado.

00:41:37 Cristiana: Obrigada, bom sábado e bom sábado. Bom domingo, boa semana para os ouvintes.

00:41:45 Ivana: Este episódio foi gravado virtualmente entre Brasil e Portugal. Jean Segata e Ivana Teixeira conduziram a entrevista e escreveram o roteiro. Ivana Teixeira emprestou sua voz para os jingles e gerenciou a produção geral e Juan Mayorga cuidou da edição de áudio e da pós-produção. Este podcast é uma colaboração internacional entre a University College London, no Reino Unido, e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, Brasil, e o Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social, em Oaxaca, México.

[1] A Fundação Oswaldo Cruz, ou Fiocruz, é a instituição mais proeminente de ciência e tecnologia em saúde da América Latina.

[2] Aqui o Prof. Bastos menciona o campus Fundão da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

[3] Hospital Universitário Antônio Pedro, em Niterói, RJ.

[4] A ABIA seria a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS – Observatório Nacional de Políticas de AIDS.

[5] O GAPA, Grupo de Apoio à Prevenção da Aids, é uma rede de apoio e prevenção à Aids que atua nos níveis estadual e municipal.

[6] Mintz, S. 1985 Sweetness and Power: The Place of Sugar in Modern History. London: Penguin.

[7] Flachs, A.; Bastos, C.; Heath, D.; Venkateswar, S. 2024 Special Issue: Plant-anthropo-genesis: the co-production of plant-people lifeworlds. Journal of Ethnobiology 44(1). https://journals.sagepub.com/toc/ebia/44/1

[8] A programação do simpósio “Plantation Afterlives and Ecologies of Loss” está disponível aqui: https://www.unive.it/data/33113/2/88530

Pontos de Aprendizagem

  • A epidemia de HIV foi um desafio para a saúde pública em todo o mundo. No Brasil, Bastos identificou uma lógica de bem-estar e social que difere da Europa. Quais são as características dessa racionalidade médica que se desenvolveu no Brasil durante a epidemia de AIDS?
  • O que Bastos diz sobre a noção de “plantas que criam pessoas”?
  • Bastos afirma que a plantação é uma “máquina que produz racismo, mas continua a fazê-lo mesmo além da abolição da escravidão, ou mesmo onde a escravidão não existiu, como é o caso do Havai”. Por que as plantações de cana-de-açúcar das quais Bastos está falando fazem parte da dinâmica da Plantationção?